De Finisterra, o Fim da Terra

As cinco e meia da tarde do dia 3 de maio de 2007, depois de caminhar 860 km, chegamos ao Fim da Terra, Finisterre, o fim da Terra plana dos antigos, que avistamos ao longe às dez e meia da manhã.
Foram mais três dias de caminhada, 85 km adicionais depois de chegar à Santiago de Compostela.
O primeiro dia, curtos 20 km até Negreira, foram deprimentes e aborrecidos. Parecia que depois de chegar à Santiago não havia mais graça, uma sensação de vazio e inutilidade da caminhada. Para piorar as coisas, o caminho foi quase todo feito por bosques de eucaliptos calcinados por incêndios - criminosos, no mais das vezes - do último verão, um dos piores dos últimos anos na velha Europa, que sofre com as mudanças no clima (e por isso mesmo está mais preocupada que o resto do mundo). E se não fosse pouco, havia a chuva e a neblina, além do frio. No albergue da Xunta não encontramos a hospitaleira, que chegou depois e nos deu algumas preciosas indicações sobre o Bar Oporto, onde comprei mantimentos. O espagueti, sucos, pão e madalenas foi compartilhado com um alemão e um ciclista inglês, Michael e Michel. O ambiente não era o mesmo dos albergues anteriores, mas melhorou.
No dia seguinte, saímos com mais chuva ainda e assim caminhamos quase metade do dia. No restante, o sol apareceu e nos acompanhou até Oliveiroa, 33 km depois. O albergue da Xunta fica em três casas tradicionais que foram restauradas - uma delas com uma preciosa cozinha galega à moda antiga - e a hospitalera é a jovem Purificación, mãe de uma das poucas adolescentes do lugar, que tem apenas 180 habitantes. Mas que já tem dois bares, um deles de um jovem casal com um filhinho de três meses, o Matteo. O Caminho de Santiago faz esses milagres. Paco, o pai de Matteo, preparou-nos uma carrillera de ternera, que vem de ser a bochecha do boi - ou vaca, tanto faz - cozida lentamente em um caldo espesso de legumes e vinho. É um corte que desconhecia e o resultado é excepcional. Para acompanhar, um portentoso pão galego e um vinho tinto da casa. No final ele nos mostrou a cozinha, com uma excelente churrasqueira para preparar cordeiros assados (inteiros). Na manhã seguinte tomamos a café da manhã com ele e partimos, ainda com neblina mas já sem chuva, para Finisterre, pois havíamos decidido suprimir Muxia do percurso (como a maioria dos peregrinos). E encaramos os 33 km até o cabo de Finisterre. O dia melhorou, com sol e vento. Vento que alimenta as centenas de turbinas eólicas, que nos acompanharam desde Navarra e aqui nesta parte da Galícia se multiplicaram. O dia e o astral melhoraram. A paisagem agora era outra. Ainda havia bosques de eucaliptos destruídos por indêncios, mas outros tantos foram preservados. E a paisagem era lindíssima, com vales, rios, corredeiras e represas. No meio da manhã avistamos o Cabo de Finisterre e seu farol, na linha do horizonte. Foi animador. Subindo e baixando, mais baixando que subindo, chegamos a Cée, uma belíssima cidade no fundo de uma reentrância do mar, na verdade um outro cabo, do mesmo nome, com uma riviera, que aqui chamam de rias. Almoçamos - polvo à moda da feira e bacalhau à galega - e seguimos em frente.
A partir de Sardiñeira um cão pastor passou a nos acompanhar com insistência, marcando o territorio com jatos de urina. Quando demorávemos, ele voltava, fazia um oito entre nós e prosseguia. Depois de alguns quilômetros nos preocupamos com a companhia. O dono poderia não gostar. E assim ele foi nos guiando. Quando chegamos a uma rodovia, ele nos indicou exatamente o lugar da travessia, que correspondia às setas amarelas. Em um ponto que havia uma baixada seguida de uma subida, ele nos guiu pela rodovia, que nos poupou esforço. Quando precisou sair da rodovia, ele ostensivamente ingressou na trilha, deu um tempo e voltou para conferir, nos esperando na entrada. E assim foi por mais de oito quilômetros, até Finisterre. Em certo momento ele foi pela praia e nós por um calçadão empedrado. E assim seguiu nos guiando, sem se importunar ou importunar os demais de sua espécie (nem da nossa). Quando tivemos que perguntar onde era o albergue, ele atravessou a rua exatamente no local certo para chegar ao albergue. A preocupação havia aumentado porque parecia que ele era nosso cão e os alberques da Xunta não aceitam animais.
Mas para absoluta surpresa nossa, ao chegar no albergue ele foi imediatamente reconhecido pela hospitalera e festejado pelos peregrinos (como sempre, uma horda multinacional). E para nosso alívio ela, a hospitalera - de nome Begonia - chamou o cão pelo nome (Jorge) e explicou que ele é o melhor guia de peregrinos nesse percurso e seu dono era amigo dela. Ela iria telefonar para ele avisando e depois ele viria buscá-lo de carro. É impressionante, verdadeiramente impressionante. Fiz fotos para que não digam depois que faltei com a verdade. É mais um causo para alimentar a picaresca - é assim que se diz por aqui - do Caminho.
Encontramos uma cadela peregrina (Natasha), uma burra peregrina (Princes) e em Castrojeriz Toñio nos disse que seu setter inglês faz o mesmo. O que não esperávamos era sermos guiados por um cão até o Fim da Terra.
Como preferimos ficar em hotel, tivemos que despistar Jorge, pois senão ele nos levaria ao hotel também.
Depois de alojados, caminhamos mais três quilômetros até o farol de Finisterre, como fazem todos os peregrinos. O sol estava se pondo e esse era o melhor horário para ver o Fim da Terra plana dos antigos.
Encontramos Paco, que caminhou dois dias conosco, que ia cumprir o ritual de queimar suas vestes, como se fazia antigamente e fazem muitos ainda hoje. Chegamos a tempo de ver - e fotografar - a fogueira com as roupas de Paco, um espanhol de Guadalajara (outra, perto de Madrid). O ritual simboliza o surgimento de um homem novo, e Paco acredita nisso.
O sol estava espremido entre o mar e uma pesada nuvem negra, mas era um crepúsculo espetacular no Fim da Terra. Depois percebi que o cabo aponta para o Sul e não para o Oeste, como esperava (quem puder, confira no Google Earth). E mais tarde, no hotel, consultando um mapa, ficou parecendo que nem é o ponto mais ocidental da Europa. Mas não importa a precisão, o que importa é que o cabo de Fisterra (em galego é assim) é agora outro patrimônio cultural europeu, definitivamente associado ao Caminho e à ancestral cultura (pagã e cristã) da Europa.
Olhando para o horizonte - que sei ser o Sul - tive a certeza que valeu a pena caminhar 860 km para encontrar o mar e tantas coisas e sensações boas.
Tenho certeza que voltarei. Caminhando, outra vez.
Valeu a pena. Vale a pena. Se a alma não é pequena.

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