A Rota da Estrada de Ferro: de Igarapé-Açu a São Francisco

Hoje vou para São Francisco. Do Pará, mano.
Saí cedinho, como sempre.
No caminho, na saída da cidade, um parque de diversões toma uma das pistas da avenida. O Prefeito daqui é mal falado e, pelo jeito, faz por onde. Fechar uma avenida para instalar um parque é, aqui ou em Paris, uma idéia de jerico, com todo o respeito. Em Paris já fizeram isso, perto de La Concorde. Mas assim como teve prefeito que permitiu, teve outro que encarou a parada e não renovou a concessão. O concessionário rosnou, mas parece que teve que tirar a roda-gigante.
Aqui em Igarapé-Açu, se não fosse pouco, ainda permitiu-se colocar umas barracas horrososas na calçada do antigo grupo escolar, um belo prédio que foi muito bem restaurado (parecido com o Mâncio Ribeiro, de Bragança). Jeriquice em dose dupla, sempre com o devido respeito.
Vou caminhar no asfalto hoje, o que é aborrecido e desgastante. As obras da nova rodovia estão chegando na cidade e a inauguração se avizinha, pelo que deu para perceber. Por isso os vestígios da ferrovia ficam escassos. E, para caminhar, é uma sengracice só.
Topo com o vereador Elizeu, que de scooter inspeciona as obras.
Desde muito antes de Igarapé-Açu venho encontrando tratores e caminhões que transportam cachos de dendê. Agora encontro com seu destino, uma indústria de extração de óleo de palma, a PALMASA. Devidamente incentivada, claro. Ela tem capacidade para processar 9 toneladas de cachos por hora. O dendê substitui, nesta região, ao que parece com melhor desempenho, o esforço que antes foi feito com a borracha, que deu errado.
De novo vêm-me à mente o mesmo questionamento: por que temos que ser eternos fornecedores de produtos primários com escassa transformação, de baixo valor agregado e mínima internalização da riqueza? Por que, mais uma vez, temos que nos conformar em incentivar um produto que não vai além do mínimo de transformação necessária para ingressar em cadeias produtivas ou mesmo clusters fora da região? O caso do dendê é mais um em que nos contentamos e ficamos muito alegrinhos - alegrinhos até demais - com muito pouco. Será que não tem lógica - econômica inclusive - condicionar os incentivos à verticalização, à formação das cadeias produtivas ou clusters aqui mesmo? São inúmeros os derivados do óleo de dendê, da margarina à lubrificantes de alto rendimento. Vejo nos cachos de dendê passando por mim uma alegoria do que de fato acontece na economia regional, centrada na exportação de produtos in natura ou semielaborados: aqui fica só o bagaço. Quando fica.
Sigo caminho, sempre pela esquerda. Aqui e acolá, dá para divisar um ou outro corte da ferrovia, semi-engolido pela rodovia.
Uma capelinha abandonada sugere que melhores tempos já teve a religião neste trecho, que fica perto de Jambu-Açu, onde chego logo depois. Na entrada da vila, à direita, está a ponte de ferro, impávido colosso. Na cabeceira de quem chega, o aterro foi desmontado pelas obras da rodovia nova, exibindo as longarinas da ponte, que ficavam enterradas. Na outra cabeceira, o aterro também foi desmontado, mas não dá para ver as longarinas. A ponte está intacta. Creio que se Lutfala - e obra é da ESTACON - tivesse inspecionado a obra teria mandado seus engenheiros pouparem o aterro e as cabeças da ponte. Como não fez, bem faria se mandasse recompô-las. Melhor ainda faria se restaurasse e fizesse um passeio para os caminhantes, integrando-a à trama urbana da Vila, quie ficou arrumadinha depois da nova rodovia.
Jambu-Açu era homenageada com seu nome em uma das locomotivas a vapor. Para meu gosto de criança, era a mais feia delas. Horrorosa. De meter medo. Não sei por que, mas metia. Acho que era porque expelia água por um dreno logo abaixo da janela do maquinista. Não sei que fim levou essa e outras locomotivas. Se fossem encontradas, bem que poderiam ser repatriadas pelas Prefeituras, para que em cada Município tivesse a sua, como fez Castanhal.
Sigo viagem - acompanhado por uma nuvem de mutucas - e logo ingresso nos domínios do que um dia foi a imensa Granja Marathon e suas plantações de seringueira. Deu errado. Como Fordlândia e Belterra. E como podem dar errado essas plantations de dendê (socialmente, pelo que nos é dado ver pelo IDH destas bandas, já deram errado). As seringueiras entanguidas parecem advertir as palmas africanas: se cuidem, eu sou hoje o que vocês poderão ser amanhã.
A sengracice da rodovia é compensada por algumas fazendas bem formadas, com pastos verdidos e pontilhadas de nelores. Aqui e acolá sobrou um igapó e um escasso buritizal, onde antes era outro igapó. Anoto nomes de fazendas. Normais, como Cristo Redentor. Mas anoto um Condado de Deus. Diferente. Merece uma foto. Rapidamente, pois se trastejar as mutucas me devoram (qualé a delas, Gorayeb).
Depois das onze horas passo pelas ruínas de uma ponte da ferrovia. Sobraram as sapatas e as cabeças, ao lado da rodovia.
Ao meio-dia chego a S. Francisco, que tem uma pracinha para acolher os chegantes. Sinceramente, lembrei-me das pracinhas que recebem os peregrinos do Caminho de Santiago.
No Rio Pau Amarelo, na entrada da cidade, um balneário parecido com o de Peixe-Boi. Não choveu e as águas estão escuras como a maioria de nossos igarapés. Adultos e crianças tomam banho, em uma cena típica do Nordeste Paraense.
Caminhar no asfalto é desgastante. Pensava avançar uns quilômetros antes das duas horas da tarde. Não deu. Preferi ficar por aqui, no Hotel Santa Luzia, que tem na fachada esculturas de cimento e uma oração de boas-vindas em azul sobre fundo amarelo. Escolho um apartamento que é usado há cinco anos por pesquisadores americanos, pelo que me diz a hospedeira.
Procuro restaurante, antes que perca a hora. De sobremesa, mangas colhidas no Hotel (o quintal está coalhado de mangas, jacas, jenipapos e... moscas).
Depois de atualizar o blog vou dar um mergulho no Pau Amarelo. Com ou sem mutucas.
Nos reencontramos no post seguinte, já em Castanhal.

Comentários

Anônimo disse…
Seguimos em frente!
Unknown disse…
ak diz:
Alencar, li de cabo a rabo, o teu "Caminho de Nazaré". Fiquei encantado - encantamento é a palavra correta - e oro - na minha maneira de orar - pela tua caminhada.
Um grande abraço,
Afonso Klautau
PS: lembro do trem que levava a família Klautau todas as férias pra Pinheiro, Icoarací.
JOSE MARIA disse…
Obrigado, companheiros de caminhada Lafayette e Afonso.
Obrigado pelas orações, meu caro AK.
Pois é, bem que alguém poderia ter uma idéia de jerico do bem e recriar esse ramal para Icoaracy, ainda que para fins puramente turísticos. Em Ushuaia fizeram isso com o trem da penitenciária, rebatizado de Tren del Fin del Mundo. Aí você poderia matar saudades e nós todos nos lembrar desse tempo.
Abraços e agradecimentos, amigos.
Anônimo disse…
Caro amigo Alencar. Suas andanças são muito interessantes, mas as narrativas são especiais. Você certamente percebeu as qualidades especiais de nossos nativos quanto a receptividade, educação e amizade e a belesa das paragens e paisagens. Também é duro constatar o estrago a natureza. Quanto a mutuca, uma das espécies que atacam mais os humanos, nesta região, é Dichelacera bifacies, pequena, (1cm) com asas rajadas, ataca nas pernas; ocorre nos meses de novembro a fevereiro.
Aproveito para lhe convidar a escrever um artigo para o livro Amazônia (que sai em fascículos as quartas no Liberal). Você poderia escrever sobre a biodiversidade, neste caminho de Nazaré, na visão de um viajante.
Minha família também tem histórias com a ferrovia.
Abraços, I. S. Gorayeb
JOSE MARIA disse…
Caríssimo Gorayeb.

Muito obrigado pela leitura, camarada.
E pelo comentário com a precisa resposta sobre a mutuca.
Encontrei seus rastros - e de sua família - em Tracuateua.
Vamos conversar sobre o artigo, que é mesmo uma boa idéia.
Peço sua compreensão, mas em legítima defesa, terminei cometendo alguns dichelaceracídios...
binho play disse…
moro em jambu-açu e gostei muito de ler oque vc postou!!!!!
valeu abraços .....
binho play disse…
moro em jambu-açu e gostei muito de ler oque vc postou!!!!!
valeu abraços .....
binho play disse…
moro em jambu-açu e gostei muito de ler oque vc postou!!!!!
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