Sobre o Conceito de Democracia

Augusto de Franco distribui a Carta Rede Social, que já passou da 131ª edição. Recebo-as regularmente desde que ela se chamava Carta DLIS. Na última ele trata das relações entre desenvolvimento sustentável e o conceito de democracia.
É leitura relativamente curta e que vale a pena, sobretudo para iluminar os casos específicos da Amazônia e do Estado do Pará.

Carta Rede Social 131
Tempo estimado de leitura: 22 minutos
ex-‘Carta Capital Social’ (e antiga ‘Carta DLIS’) é uma comunicação pessoal de Augusto de Franco enviada quinzenalmente para mais de 5.000 agentes de desenvolvimento e outras pessoas interessadas no assunto, de todo o Brasil. Esperamos que esta mensagem seja útil, mas se você não quiser mais recebê-la, basta clicar aqui e enviar. Obrigado.
Prezado José Maria,
Alguns leitores me perguntam por que venho insistindo tanto no tratamento teórico da questão política em um tipo de correspondência como esta, prioritariamente dedicada, desde o final de 2001, ao desenvolvimento humano e social sustentável. Venho tentando explicar, pelo visto sem muito sucesso, que a questão do desenvolvimento é fundamentalmente política. E que existe um nexo conotativo entre desenvolvimento e democracia que ainda não foi claramente percebido nem, por um lado, pelos teóricos do desenvolvimento e nem, por outro, pelos chamados cientistas políticos que participam do debate contemporâneo sobre a radicalização ou democratização da democracia.A indução do desenvolvimento exige tanto um ambiente democrático institucional (da democracia representativa mesmo, informada pelas conhecidas concepções liberais), quanto exige inovações políticas democratizantes ensaiadas na base da sociedade.Talvez seja bom retomar esse tratamento do princípio – ou, pelo menos, interpolar-lhe agora um fundamento – para esclarecer melhor a incompatibilidade que existe entre promoção do desenvolvimento sustentável, clima institucional desfavorável à democracia e instalação de processos autocratizantes na sociedade. Tal fundamento diz respeito às concepções de democracia, cuja análise deveria preceder o exame das condições para a sua radicalização, no qual já fui avançando nas últimas cartas. Vamos dar um passo atrás, portanto.
Sobre o conceito de democracia
Não é possível conceituar democracia sem conceituar autocracia. E não é possível falar da autocracia sem falar da guerra. Como dizia a letra de uma antiga canção alemã (uma frase que acho divertidíssima): “contra os democratas, somente os soldados ajudam”.Em virtude de uma conjunção particularíssima – provavelmente fortuita – de variados fatores, sociedades humanas na antiguidade lograram abrir uma brecha na cultura autocrática (patriarcal, hierárquica e guerreira), ensaiando pactos de convivência a partir de redes de conversações entre iguais, que aceitavam a legitimidade do outro e valorizavam sua opinião e não apenas o seu conhecimento técnico ou o seu saber científico ou filosófico. Registros históricos apontam que isso aconteceu em cidades gregas, mas não é improvável que tenha ocorrido também, de modo mais fugaz, em outras oportunidades e lugares (e o relato profético da chamada Assembléia de Siquém, ocorrida na Palestina, entre os séculos 12 e 11 antes da Era Comum, constitui um indício importante nesse sentido). Assim surgiu a democracia como uma experiência de conversação em um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo autocrata.Do ponto de vista dos sistemas autocráticos, amplamente predominantes, a democracia – para usar uma expressão de Saint-Exupery – foi um erro no cálculo, uma falha na armadura... devidamente corrigida nos dois mil anos seguintes à experiência dos gregos. Quando os modernos tentaram reinventá-la, só então se pôde perceber toda a força da tradição autocrática. Nos dois séculos depois das ousadias teóricas de Althusius (1603), Spinoza (1670) e Rousseau (1762) – que lançaram os fundamentos para a reinvenção da democracia pelos modernos (a idéia de política como vida simbiótica da comunidade, a idéia de liberdade como sentido da política e a idéia de democracia como regime político capaz de materializar o ideal de liberdade como autonomia), os pensadores políticos postaram-se – em sua imensa maioria – francamente contra a democracia. O juízo de Burke (1790), segundo o qual “a democracia é a coisa mais vergonhosa do mundo”, é emblemático desse ânimo autocratizante que vigorou nos dois milênios anteriores.Quando, afinal, a democracia começou a ser re-ensaiada para valer pelos modernos, a política tornou-se palco de uma tensão permanente entre tendências de autocratização e de democratização da democracia.Nada indica que essa tensão tenha desaparecido na contemporaneidade. Ainda que este seja um esquema explicativo, pode-se escrever a história da democracia como a história de um confronto, onde, de um lado, remanesciam as atitudes míticas, sacerdotais e hierárquicas que mantinham a tradicionalidade e, de outro, as atitudes utópicas, proféticas e autônomas que fundaram a modernidade.A brecha democrática não foi aberta de uma vez. Ela foi aberta e fechada várias vezes. E continua, nos últimos dois séculos, sendo alargada e estreitada de modo intermitente. Desse ponto de vista, o que chamamos de democratização nada mais é do que o processo de alargamento dessa brecha.Muito antes dos gregos, o principal movimento autocratizante foi a guerra. A guerra já era considerada pelos gregos como uma atividade não-democrática (e a rigor, para eles, era uma realidade apolítica, como observou genialmente Hannah Arendt (1958?), nos seus vários estudos “Sobre o sentido da política”, publicados postumamente). No plano conceitual, guerra e democracia (ou política praticada ex parte populis) são originalmente incompatíveis.Depois dos gregos, a guerra foi o meio universal de acabar com a política (democrática) ou de estreitar a brecha por ela aberta nos sistemas de dominação. Guerra como modo de regular conflitos e de alterar a morfologia e a dinâmica da rede social para se preparar para o conflito externo (por meio do chamado “estado de guerra”, instalado internamente) foi o meio pelo qual a tradicionalidade política pôde se prorrogar, não apenas derrotando inimigos de modo violento, mas também construindo continuamente tais inimigos (para poder preservar uma morfologia e uma dinâmica social que, erigida em função da guerra, constituiu-se como um complexo cultural). Usando uma metáfora contemporânea, trata-se de um programa (software) que foi instalado na rede social e adquiriu capacidade de modificar essa rede (hardware) para se auto-replicar.A guerra sintetiza o contrário da democracia: nega-se a legitimidade do outro, desvaloriza-se a sua opinião – a ponto de não permitir sequer o seu proferimento – e abolem-se totalmente os espaços (públicos) onde as opiniões dos cidadãos possam interagir e se polinizar mutuamente (por meio da conversação na praça).Guerra, por sua própria natureza, impõe mitificação da história, sacerdotalização do saber e hierarquização das relações sociais. A visão da história passa a ser orientada pela idéia de que existe um homo hostilis (inerentemente competitivo) condenado a lutar eternamente para fazer prevalecer seus interesses (egotistas) sobre os dos demais. A visão do saber passa a ser orientada pela idéia de que o progresso humano é conseqüência do avanço tecnológico de um homo faber (fabricante de ferramentas, que logo serão usadas como armas); e daí a mitificação do conhecimento técnico, entronizado como critério meritocrático (sacerdotal porquanto baseado no segredo que introduz opacidade nos procedimentos e organizado em graus de ordenação, quer dizer, de capacidade de reproduzir uma determinada ordem). A visão do poder passa a ser orientada pela idéia de que existem formas de organização social que seriam “naturais” ou inevitáveis para o estabelecimento daquele controle social sem o qual a sociedade seria destruída por seus inimigos externos ou pelos seus próprios integrantes (na base da “bellum omnium contra omnes” estão as idéias de ordem top down, piramidal, como controle centralizado ou multicentralizado, de fluxo comando-execução, de disciplina e obediência, enfim, de poder como capacidade de mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade). E tudo isso passa a valer não apenas como repertório de expedientes e providências para destruir o inimigo externo (ou para não ser por ele destruído), mas também como norma para reger a vida interna das sociedades, mesmo em tempos de paz (tempos esses que devem ser dedicados à preparação para a guerra, na linha do “se queres a paz, prepara-te para a guerra”, o que deixa claro que a guerra é promovida à condição de uma realidade inexorável ou onipresente). Neste parágrafo talvez estejam reunidos todos os elementos para uma conceituação da autocracia e, inversamente, da democracia.Todavia, é óbvio que por força de suas conseqüências humanas, sociais e ambientais desastrosas, a guerra não pode ser muito bem-vista pelos cidadãos. Sem a guerra como instituição, porém, não há como manter as estruturas verticais de poder e as normas autocratizantes que lhes são acompanhantes. Ademais, com a expansão da democratização, as guerras tendem a se reduzir; por exemplo, nações democráticas não costumam guerrear entre si. Essa é a principal contradição que vive a autocracia, a qual não pode subsistir sem a guerra.Na ausência de guerra, o processo de autocratização seria logo suplantado pelo processo de democratização. É por isso que, a partir da modernidade, o ímpeto regressivo das tendências autocratizantes vem se manifestando não somente na guerra mas nas concepções e práticas políticas que tomam a política como uma espécie de ‘continuação da guerra por outros meios’.É assim que, na época atual, o grande problema para a política democrática não é prioritariamente a guerra – conquanto ela continue sendo promovida por quistos autocráticos instalados dentro de países democráticos contra países não democráticos e por países não democráticos entre si – mas o exercício da política como “arte da guerra” (essa sim, praticada universalmente como realpolitik).Sobre as pervertidas concepções correntes de democracia Ao ler no noticiário da semana passada que uma importante autoridade do Brasil usou, referindo-se aos adversários políticos, uma imagem de guerra ("se a gente levanta a metralhadora na altura do peito, a gente acerta o adversário...”) fiquei preocupado, não com o possível (e improvável) perigo da adoção de métodos violentos na disputa política nacional e sim com a natureza da metáfora. Quem pensa a política dessa maneira, pensa a política como ‘continuação da guerra por outros meios’: a chamada ‘fórmula inversa de Clausewitz’ que comentei extensamente na carta anterior.Mas a política, afinal, não é isso mesmo? E, porventura, deveria ela ser alguma coisa diferente do que de fato é? Parece claro, pelo menos para mim, que a política realmente existente é também a política que permite a superação do que existe (inclusive da superação das formas pelas quais ela, a própria política, se materializa). Ou seja, a política é sempre preferível à não-política (à guerra ou à “paz” como “estado de guerra”, como preparação para guerra, a “paz” dos impérios e das autocracias ou dos cemitérios). Embora seja freqüentemente pervertida como “arte da guerra”, a política é a única possibilidade de evitar a guerra, em quaisquer de suas formas.Em outras palavras, enquanto houver política permanece aberta a possibilidade de corrigir as perversões autocratizantes de que ela é vítima. A política pode ser vista, assim, como um campo de disputa entre tendências que querem autocrátizá-la e tendências que querem democratizá-la. Se isso não significa, por um lado, que devamos renunciar à política realmente existente, com base na evidência de que ela ainda é, predominantemente, uma espécie de “arte” da “guerra sem derramamento de sangue” (como queria Mao), por outro lado também não significa que não devamos apontar-lhe as mazelas. Enquanto houver política, podemos sempre nos esforçar para contribuir com aquelas correntes que querem democratizar a política.Isso posto, é claro que a política deveria ser a “arte da paz”, em um sentido, porém, mais profundo do que simplesmente aquele de evitar o desfecho violento dos conflitos. A “arte da paz” deveria ser entendida como uma espécie de “pazeamento” das relações, quer dizer, não apenas evitar a violência física, mas também as outras formas de violência ou de constituição de inimizades, que atentam contra o espírito comunitário (enfraquecendo a comunidade política), como: o clima adversarial e a disputa permanente; a luta incessante (que deriva, indevidamente, da política como modo de regulação de conflitos, uma espécie de conflitocultismo, na base do “tudo é luta”) e a contínua construção de inimigos (políticos), própria da realpolitik; a procura paranóica de culpados pelos problemas (ao invés da investigação das causas desses problemas); e, fundamentalmente, a imposição de restrições à liberdade (daí ser desejável que a política possa ser encarada também como uma “arte de promover a liberdade”). É importante observar que todas essas formas podem incidir em regimes formalmente democráticos, gerando permanentes conflitos de baixa-intensidade dos quais resultam, via de regra, democracias com alto grau de antagonismo.Mas o que é (e o que não é) democracia? Essa questão continua sendo bastante maltratada. Permanece, em certos meios a compreensão de que democracia é a prevalência da vontade da maioria (ou seja, é a regulação majoritária da inimizade política); ou de que democracia é a lei do mais forte (daquele que tem maioria, sendo, no caso, mais forte, o competidor que tem mais votos); enfim, de que a democracia é o regime da maioria.Trata-se de uma visão de democracia rebaixada pela idéia de que só existe um meio de mediar conflitos: estabelecendo a prevalência da vontade da maioria, revelada numa disputa (em geral por votos). Aparentemente democrática, tal visão, na verdade, é bastante problemática.Em primeiro lugar porque estabelece uma dinâmica adversarial de convivência política, cada competidor tentando fazer maioria para derrotar os adversários, o que evoca a idéia de que o mais forte pode impor sua vontade aos mais fracos (ainda que aqui o voto ocupe o lugar das armas ou do corpo usado como arma, o mesmo fundamento incivil permanece).Em segundo lugar porque democracia não é o regime da maioria e sim o regime das (múltiplas) minorias. A liberdade e os direitos das minorias devem estar protegidos de eventuais humores autocráticos (violadores da liberdade) da maioria. Caricaturando um pouco para mostrar o absurdo: se democracia fosse o regime da maioria, uma sociedade que tivesse 60% de brancos e 40% de negros poderia decretar – em eleições limpas, por maioria – a escravidão dos negros?Há a questão dos direitos, que não podem ser violados pela maioria. Ademais, a democracia deve contemplar a possibilidade de minorias virem a se tornar maiorias, o que só acontecerá se as regras do jogo garantirem às minorias as mesmas condições que garantem à maioria (coisa que, na prática, nunca acontece plenamente). E o que só acontecerá (minimamente, para o regime em questão poder ser chamado de democrático) se essas regras forem respeitadas pela maioria, a qual não pode – baseada no fato de que é maioria – alterar tais regras durante o jogo. Quando a maioria não obedece às normas estabelecidas para tornar (minimamente) equânime a disputa, pode se perpetuar ou se delongar no poder, falsificando a rotatividade democrática. O que só não ocorrerá se existir Estado de direito e instituições fortes, capazes de impor a prevalência das leis, mesmo contra a vontade da maioria.Esse é o motivo pelo qual maiorias não-convertidas à democracia – muitas vezes constrangidas a seguir a sua liturgia ou ritualística formal por falta de condições internacionais e nacionais para escapar dessas limitações à expansão do seu domínio – tentam perverter a política e degenerar as instituições. As instituições constituem freios ao apetite pelo poder das maiorias e atuam tentando conter a sua voracidade. Se elas forem corrompidas, fica mais fácil alterar as regras do jogo, para então poder usar a democracia (formal) contra a democracia (substantiva); quer dizer, com instituições fracas, corrompidas ou degeneradas, fica mais fácil enfrear o processo de democratização, criando mais-ordem top down e, conseqüentemente, reduzindo as liberdades (ainda que se possa continuar encenando o ritual democrático, como ocorre atualmente na Venezuela e em outros países da América Latina).A degeneração das instituições é um processo que ocorre quando as normas que determinam o formato e regem o funcionamento institucional são pervertidas por uma prática política que se utiliza instrumentalmente dessas estruturas e dinâmicas para obter vantagens ou alcançar resultados que não têm a ver com a sua natureza ou propósito original, constituinte ou fundante. A corrupção e outros comportamentos políticos pervertidos degeneram as instituições. Tal degeneração também pode se dar, para além da corrupção, pela transposição de uma lógica partidária privada – baseada em critérios de maioria e minoria – para dentro das instituições públicas. Com o avanço de tal processo degenerativo, das instituições tende a restar apenas a casca, a dinâmica formal, a liturgia, a ritualística.A degeneração das instituições se dá, nesse sentido, quando o processo de ocupação organizada do Estado por uma força privada, partidária, esvazia as instituições públicas de seu conteúdo ao deslocar o centro das decisões para uma instância externa e ilegítima; assim, por exemplo, se o partido da maioria logrou fazer maioria em um ente Estatal qualquer, seja um órgão da administração, uma empresa pública, um tribunal ou uma agência reguladora, as decisões dessas instituições que interessam politicamente ao poder já estarão tomadas de antemão, cabendo apenas, ao ente em questão, fazer a encenação de praxe para validar o que já estava decidido.Experiências recentes de degeneração das instituições em democracias nas quais líderes populistas lograram conquistar governos, legitimamente, pelo voto, mostram que ela obedece a uma estratégia de retenção do poder nas mãos de um mesmo grupo – falsificando a rotatividade democrática – e tem como objetivo a construção de condições que permitam o estabelecimento de uma hegemonia de longa duração. Tal estratégia é legitimada pela idéia de que as instituições atuais não são ativos democráticos e sim passivos herdados da velha dominação das elites, os quais um governo popular teria não apenas o direito, mas o dever de remover e substituir por outras instituições desenhadas de acordo com os interesses da maioria do povo, só não o fazendo de pronto porquanto (e enquanto) a correlação de forças não lhe é favorável. Para tornar a correlação de forças favorável é necessário prosseguir no processo de conquistar maioria partidária em todas as instâncias onde isso for possível e por todos os meios possíveis, sendo que, um desses meios é, exatamente, a ocupação e a conseqüente degeneração das instituições.Freqüentemente a política vem sendo pervertida por meio da realpolitik exacerbada, que transforma tudo em uma guerra. Antes de tudo, é uma fórmula cômoda para justificar qualquer tipo de insucesso, de erro ou de irregularidade. Se um programa público não funcionou como o previsto, a culpa é dos inimigos, da sua presença não cooperativa ou da herança que deixaram. Se uma falha foi cometida, a culpa é do inimigo, que “puxou o tapete” ou inviabilizou de algum modo a consecução do projeto correto. Se um crime foi perpetrado, a culpa é de quem divulgou o delito, motivado apenas por interesses eleitoreiros.Mas a perversão da política como arte da guerra se baseia na noção, antidemocrática, de que “guerra é guerra”, quer dizer, de que não existe, a rigor, guerra limpa. Assim, numa guerra, sempre suja, justificam-se todos os insucessos e, pior, todos os erros. No limite, pode ser justificado qualquer crime. Trata-se de uma espécie de shimittianização (de Carl Shimitt, cuja obra, “O conceito do político”, comentei na carta anterior) da política, que tende a encarar qualquer diferente como inimigo pelo simples fato de ele ser um outro. Ser outro já significa uma ameaça de se constituir como alternativa ao mesmo. Ameaça que, portanto, deve ser combatida, neutralizada ou destruída.Uma idéia derivada das idéias acima é a de que democracia é a regra do jogo estabelecido para verificar quem tem mais audiência e, assim, entregar os cargos públicos representativos ao detentor do maior índice de popularidade. Trata-se de outra concepção pervertida de democracia. Nos regimes democráticos contemporâneos, no contexto de uma sociedade midiática, instalou-se essa espécie de “ditadura do índice de audiência ou de popularidade”, verificada por pesquisas de opinião, que não raro confunde, perigosamente, popularidade com legitimidade. Cabe notar que, se fosse assim, o processo eleitoral seria quase dispensável: bastaria aferir os índices de popularidade dos postulantes a qualquer cargo. A democracia, entretanto, abarca um processo mais complexo do que o da verificação de preferências. O próprio processo eleitoral é mais complexo, não raro ensejando mudanças bruscas nas correntes de opinião. Além disso, a democracia não pode se restringir ao processo eleitoral, enveredando pelo desvio chamado eleitoralismo (que pode ser extremamente perigoso para a democracia se, confundindo popularidade com legitimidade, permitir que as maiorias enveredem para o crime e a corrupção e permaneçam impunes, já que contariam com o apoio popular).Outra variante populista (e, portanto, autoritária) de (in)compreensão da democracia é a idéia de que democracia é fazer a vontade do povo. Ora, o fato de a democracia ser uma política feita ex parte populis não significa que alguém – algum representante supostamente ungido pelo povo – possa encarnar a missão de fazer a vontade do povo (e, antes, que tal representante tenha o condão de interpretar essa vontade), como sugere a formulação da frase acima. Pois do contrário, no máximo, se poderia dizer que a democracia é uma maneira de o povo realizar a sua vontade, mas referindo-se isso ao processo democrático como um todo e não à delegação de tal missão a um (ou mais de um) representante(s) escolhido(s) por maioria.Também compõe esse repertório de concepções (só aparentemente) democráticas a idéia de que os votos da maioria da população estão acima das decisões das instituições democráticas quando tais instituições representam apenas as minorias. Esse é um argumento construído para legitimar a degeneração das instituições, para que elas não possam mais ser capazes de frear a voracidade pelo poder da maioria. Se as instituições ficassem ao sabor da vontade da maioria não poderiam ser fiéis do processo democrático e não poderia, a rigor, subsistir qualquer regime democrático. Instituições não têm que “representar” – stricto sensu – nem maioria, nem minorias. Seu papel é garantir que a democracia seja o regime no qual as (múltiplas) minorias possam vir a se tornar maioria e, em qualquer circunstância, possam continuar existindo como minorias, mesmo quando já tenham sido maioria. Em suma, antes de impor uma ordem que favoreça a governabilidade (para o bom exercício dos mandatos da maioria), cabe às instituições democráticas estabelecer aquele tipo de ordem capaz de garantir a liberdade, sobretudo a liberdade daqueles que discordam da maioria e a ela se contrapõem dentro das regras institucionais vigentes. Assim, se os votos da maioria da população pudessem ficar acima das instituições não haveria possibilidade de democracia.Ainda em voga nos dias que correm é a idéia segundo a qual para um governo ser democrático basta ter sido eleito sem fraude pela maioria da população. Trata-se de outra falácia autoritária. O fato de um governo ter sido eleito por maioria em eleições limpas é uma condição necessária mas não suficiente para que tal governo possa ser qualificado como democrático. É necessário que o governo, eleito democraticamente, também governe democraticamente. A eleição não é um cheque em branco, que dá direito ao eleito de fazer o que bem entender em nome da maioria: ela constitui apenas um episódio em um processo democrático que é quotidiano. O caráter democrático de um governo deve ser conquistado diariamente pelas suas opções e ações democráticas. Assim, um governo eleito democraticamente deixará de ser democrático se descumprir as leis ou se promover a degeneração das instituições, quer por meio da corrupção e de outras ações para desacreditá-las, quer por meio da perversão da política; por exemplo, ocupando-as e aparelhando-as para esvaziar, por dentro, o seu sentido.A idéia de que quem tem maioria tem sempre legitimidade é também bastante freqüente nos tempos atuais. Assim como a legitimidade não pode ser conferida pela maioria, ela também não é um atributo da popularidade (e a confusão entre as duas coisas – como faz o eleitoralismo – é letal para a democracia). Num regime democrático representativo quem dá legitimidade à maioria, em termos políticos, são as (múltiplas) minorias que acatam o resultado das urnas e acatam, além disso, o direito da maioria de governar, mesmo não concordando com o conteúdo de suas ações, pelo fato de reconhecerem que as normas democráticas e as instituições estão sendo respeitadas. Se as leis não forem respeitadas pela maioria, ela perde a legitimidade (e é nesse contexto conceitual que faz sentido a afirmação de que “a democracia é o império da lei”), ainda quando seus representantes continuem sustentando altos índices de popularidade.Continuando a lista de concepções correntes anunciadas como democráticas mas que pervertem a democracia, vem a idéia de que um grande líder identificado com o povo pode fazer mais do que instituições cheias de políticos controlados pelas elites. Trata-se de perigosíssima afirmação para a democracia, em geral difundida por líderes populistas.Vale a pena abrir aqui um parêntesis para examinar o populismo, na medida em que ele se constitui como uma forma de subverter a democracia.O historiador mexicano Enrique Krause escreveu recentemente (2006: “Os dez mandamentos do populismo”) que o populismo – ao contrário do que se imaginava – continua sendo uma variante política da atualidade, sobretudo na América Latina. Ele mostrou como está surgindo o fenômeno da emergência de um “populismo latino-americano pós-moderno” – que poderia também ser chamado de neopopulismo – que se diferencia das formas tradicionais, mais conhecidas, que se caracterizavam por uma irresponsabilidade macro-econômica.Líder carismático, demagogia e palanquismo, dificuldade de aceitar a crítica e a opinião do outro, esbanjamento de recursos públicos (sobretudo para financiar gastos crescentes do Estado com pessoal, quer dizer, com aparelhamento), assistencialismo, incentivo à divisão da sociedade na base dos pobres contra os ricos (ou do povo contra as elites), mobilização das massas, criação de inimigos, desprezo pela ordem legal e desvirtuamento das instituições – todos esses ingredientes, quando combinados, compõem a fórmula do novo populismo. (E um regime pode ser autoritário, como nos mostrou o ditador Salazar, em Portugal, sem ser irresponsável do ponto de vista econômico; ou seja, a estabilidade monetária pode ser usada como exemplo de bom-comportamento enquanto se suprime, restringe ou polui o ambiente democrático).O neopopulismo é esse novo tipo de populismo que floresce quando líderes carismáticos e salvacionistas, apoiados por correntes estatistas e corporativistas, se apossam, pela via eleitoral, das instituições da democracia e as corrompem, gerando um ambiente degenerativo que perverte a política, privatiza partidariamente a esfera pública e enfraquece a sociedade civil; trata-se de uma vertente política de caráter autoritário que convive com a democracia mas que exerce sobre ela uma espécie de parasitismo; ou seja, que usa a democracia contra a democracia para enfrear e reverter o processo de democratização da sociedade, assegurando condições para a permanência, por longo tempo, de um mesmo líder e do seu grupo no poder.Esse projeto de poder em geral não trabalha por fora das instituições e sim por dentro (daí a sua característica de parasitismo da democracia). Enganam-se, portanto, os que acham que vão surpreender os neopopulistas em uma tentativa de golpe de Estado. Sua via principal é a eleitoral. Tudo o que fazem tem como objetivo continuar ganhando as eleições, sucessivamente: por um lado, palanquismo-messiânico (do líder que se diz predestinado a salvar os pobres) regado com assistencialismo-clientelista (o neoclientelismo) e, de outro, conquista dos meios institucionais pela privatização partidária da esfera pública e pela alteração da lógica de funcionamento das instituições. Essa é a fórmula do neopopulismo.À pergunta de “por que renasce de tempos em tempos a erva daninha do populismo na América Latina?”, Krause responde: “as razões são diversas e complexas, mas aponto duas. Em primeiro lugar, porque suas raízes se fundem em uma noção mais antiga de "soberania popular" que os neo-escolásticos do século 16 e 17 propagaram nos domínios espanhóis, que teve uma influência decisiva nas guerras de independência de Buenos Aires ao México. O populismo tem, além disso, uma natureza perversamente "moderada" ou "provisória": não termina sendo plenamente ditatorial nem totalitário; por isso alimenta sem cessar a enganosa ilusão de um futuro melhor, mascara os desastres que provoca, posterga o exame objetivo de seus atos, amansa a crítica, adultera a verdade, adormece, corrompe e degrada o espírito público. Desde os gregos até o século 21, passando pelo aterrador século 20, a lição é clara: o efeito inevitável da demagogia é subverter a democracia”.Por último, encerrando a lista, temos aquelas surradas idéias segundo as quais não adianta ter democracia se o povo passa fome ou não adianta ter democracia política se não for reduzida a desigualdade social.São, a rigor, duas afirmações populistas, como tais demagógicas (e, portanto, subversoras da democracia), que confundem a esfera das liberdades com a esfera das necessidades, subordinando a política às condições de uma cidadania universalizada (seja na perspectiva do igualitarismo, seja na perspectiva do estabelecimento, ex parte principis, de mínimos sociais sobrevivenciais). A democracia (política, como toda a democracia) é, assim, vista quase que como um luxo, uma realidade própria de um regime de abundância, que não poderia ser exigido diante da realidade da escassez. Cuba não tem democracia, mas – diziam (e ainda dizem) seus defensores, desqualificando a democracia que lhes cobram como apenas política e apenas representativa, burguesa, controlada pelas elites – em compensação, não tem crianças na rua e nem favelas com populações em situação de extrema vulnerabilidade social. Mais valeria, segundo tal pensamento, ter toda a população bem alimentada, mesmo que para isso algumas liberdades fossem (temporariamente) restringidas (pelo menos até que se atingisse o reino da abundância ou se chegasse a uma solução satisfatória para os problemas de sobrevivência da maioria do povo).Afirmações como essas contribuem para desacreditar a democracia e para atrasar o processo de democratização das sociedades ao confundi-lo, sintonizando-se instrumentalmente com o senso comum, com os processos eleitorais (já desgastados e sem muita credibilidade). São, no fundo, visões autocráticas, que concorrem no sentido de autocratizar a democracia. Pois como a democracia é sempre resultado do processo de democratização, quer dizer, como só se pode construir democracia praticando democracia, se a democracia somente pudesse ser experimentada quando os problemas sociais fossem resolvidos, quem, então, sem ter passado pela experiência democrática, poderia democratizar a sociedade pelo povo e para o povo? E, antes, parece óbvio que se os problemas sociais pudessem ser resolvidos sem democracia, como condição para alcançar a (“verdadeira”) democracia no futuro, caberia a alguém fazer isso pelo povo e para o povo, por fora da democracia, quem sabe um déspota esclarecido e identificado com as necessidades populares...Pois bem. Mas será que isso tudo tem a ver com nosso tema central? Tem a ver sim e mais do que se pensa. Pois programas e ações de governos ou de outras instituições que tenham como fundamento tais concepções pervertidas de democracia não podem ser programas indutores do desenvolvimento social (entendida essa expressão, stricto sensu, como desenvolvimento da sociedade, constituição de ambientes favoráveis à boa-convivência ou aumento da conectividade da rede social). Podem até incrementar o capital humano (como, aliás, conseguiram fazer vários programas, ditos sociais, que foram implementados no Brasil na época do regime militar ou sob a ditadura de Pinochet no Chile), mas não conseguirão contribuir para aumentar o estoque ou o fluxo do capital social. Pelo contrário, com toda certeza, exterminarão capital social, inviabilizando ou dificultando as iniciativas individuais e coletivas dos cidadãos para promover o seu próprio desenvolvimento.
Até a ‘Carta Rede Social 132’ e um abraço doAugusto de Franco augustodefranco@gmail.com15 de fevereiro de 2007.
Para ler as ‘Cartas Rede Social’, ex-‘Cartas Capital Social’ (e antigas ‘Cartas DLIS’) e outros textos de Augusto de Franco, publicados a partir do final de 2005, clique em www.augustodefranco.com.br
As Cartas Rede Social (ex-'Cartas Capital Social' e antigas 'Cartas DLIS') dos anos anteriores (2001 a 2005: 'Carta DLIS 1' a 'Carta Capital Social 97'), estão sendo progressivamente transferidas para o site acima, que ainda está em processo de reformatação.

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