O Trabalho dos Sacerdotes

Como prometido, volto ao tema do trabalho dos sacerdores - e das sacerdotisas - aqui tratado em tese, embora a provocação tenha tudo a ver com a agora famosa sentença do pai de santo, que não será objeto deste post, em respeito à Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN, para os do ramo).
O trabalho dos sacerdotes - sim, sacerdotes são prestadores de serviços religiosos - é passível de uma dupla apropriação jurídica, uma pelo direito das religiões (Código de Direito Canônico, Bíblia, Corão etc) e outra pelo direito comum, pelo direito laico. Pela lei de Deus e pela lei dos homens, enfim.
O trabalho apropriado pelo direito das religiões não será objeto deste post (prometo voltar ao tema depois).
Interessa aqui o trabalho dos sacerdotes apropriado pelo direito comum, pela lei dos homens.
Começo relembrando que desde 1974 os sacerdotes, de qualquer religião, foram reconhecidos pelo direito previdenciária brasileiro como prestadores de serviços e, por isso mesmo, considerados contribuintes individuais obrigatórios da Previdência Social. São eles trabalhadores autônomos, quando prestam serviços nessa condição. E são inúmeros os casos e hipóteses de prestação de serviços religiosos sob a forma de trabalho autônomo, desde a contratação de um padre ou pastor para um batismo ou casamento até a de um diácono para as exéquias de um familiar, para ficar nos dois extremos da vida.
Relembro também que os sacerdotes podem ser servidores públicos militares, os capelães militares, de qualquer religião. Aqui no Estado do Pará, graças a um intenso lobby de católicos e evangélicos durante a Constituinte Estadual (fui testemunha ocular disso em 1989), as capelanias militares são atribuídas às diversas denominações religiosas, conforme censo religioso anual da tropa policial militar. Para melhor clareza dessa apropriação do trabalho religioso pelo direito constitucional estadual paraense, transcrevo o art. 315 da Constituição do Estado do Pará:

Art. 315. É assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

§ 1°. Nos atos de recrutamento e seleção de capelães civis e militares, será mantido o princípio da proporcionalidade, e o número de capelães das diversas religiões professadas equivalerá ao número dos respectivos adeptos, apurado em censo religioso anual.
§ 2°. O concurso público de capelão será específico para cada credo que tenha alcançado o quociente religioso, o qual é obtido dividindo-se o efetivo geral pelo número das vagas fixadas em lei.
§ 3°. Os candidatos a capelão devem ser apresentados pela autoridade religiosa do credo selecionado.
§ 4°. Nos atos de recrutamento e seleção de capelães civis e militares, será assegurada a participação da denominação religiosa que, sem ter alcançado o quociente religioso, conte com, no mínimo, um décimo de adeptos na entidade, isolada ou cumulativamente com denominações afins na sua doutrina, tendo a mesma direito a um capelão.

Claro que esse é um dispositivo constitucional raro e pouco conhecido, mas ele existe, está vigente e, até onde sei, é religiosamente aplicado pela Polícia Militar do Estado do Pará (e ai dela que não o faça...).
Por último, mas não menos importante, o trabalho do sacerdote pode ser prestado sob contrato de emprego. Sim, um sacerdote pode ser empregado, nessa condição. Alguns casos são até bem conhecidos, embora raros.
Por exemplo, nos grandes frigoríficos que exportam carne de gado para Israel e outros países onde existem nichos de mercado específico para cortes kosher (que obedecem à lei judáica) é obrigatória a supervisão de um rabino, que pode perfeitamente ser empregado, nessa condição. Afinal, ele estará submetido às ordens da empresa, à disciplina fabril, receberá remuneração e trabalhará com habitualidade, com o que estarão presentes os três atributos constitutivos do contrato de emprego (trabalho habitual, subordinado e remunerado). Não quero dar idéia, mas é o que um dia pode reinvidicar o Rabino Meir Avraham Iliovits, que supervisiona a Kosher Mart, caso ela ainda não tenha, preventivamente, formalizado regular contrato de emprego com ele. É claro que se a supervisão do rabino for eventual, esporádica, o trabalho nesse caso será autônomo.
O mesmo se diga de um clérigo muçulmano (ímã ou aiatolá) que supervisione um abatedouro de gado ou frango que exporte para países árabes, que pode ser tanto empregado como trabalhador autônomo, dependendo se trabalha com habitualidade e subordinação ou não (remuneração vai haver sempre).
Também o diácono que preste serviços religiosos com habitualidade e subordinação para uma funerária, pode se tornar empregado dela (mais uma vez não quero dar idéia...).
De igual modo pastores evangélicos podem ser empregados, inclusive de suas respectivas igrejas (algumas das quais chegaram a registrar os contratos de emprego na Carteira de Trabalho e Previdência Social, e foram desaconselhadas a fazê-lo por suas assessorias, com base na jurisprudência), das quais recebem ordens (a disciplina é particularmente rigorosa) e remuneração (prebendas, óbolos, sustentos pastorais ou subsídios pastorais) .
Cito, mas não interessa para os fins deste post - porque não se trata de sacerdote - outro caso bem conhecido da doutrina e da jurisprudência: o do colportor (evangelista distribuidor de livros adventistas), que pode se tornar empregado, se ficar provado o trabalho habitual, subordinado e remunerado.
Em suma, o sacerdote ou sacerdotisa, de qualquer religião, presta serviços religiosos e, nessa condição, pode ser trabalhador autônomo, servidor público militar (capelão) ou empregado.

Comentários

Anônimo disse…
Exato, Alencar.

O clero que se cuide!

Mas, como disse, isto é trabalho medido, real.
JOSE MARIA disse…
Obrigado pelo comentário, Lafayette.
Vou comentar depois as relações entre o sacerdote e sua religião.
Yúdice Andrade disse…
Texto muito esclarecedor, meu caro, em se tratando de uma questão a que, de ordinário, não damos atenção. Todavia, acho que vão começar a aparecer reclamações trabalhistas de religiosos por estas bandas, ainda mais com você repetindo que não quer dar idéias a ninguém...
Abraços.
JOSE MARIA disse…
Obrigado pelo gentil comentario, caro Yúdice.

Na verdade, são raras, mas estão ficando comuns as reclamações trabalhistas de religiosos, pastores evangélicos inclusive. De colportores não temos nada nesta Região, mas em outras elas foram comuns o bastante para a matéria chegar ao Tribunal Superior do Trabalho.
Aqui tivemos uma reclamação de uma religiosa católica que converteu-se a uma denominação religiosa pentecostal e, logo em seguida, reclamou contra sua ex-congregação ou paróquia, não me lembro bem.
Fui relator de um recurso ordinário em que um pastor pretendeu ver reconhecido o contrato de emprego com a Igreja Universal e nele a Terceira Turma decidiu conforme ementa abaixo:
CONTRATO DE EMPREGO. CULTO RELIGIOSO. MINISTÉRIO. PASTOR EVANGÉLICO. Não é empregado o pastor evangélico que exerceu ministério de culto religioso recebendo prebendas e outros direitos assegurados pela igreja reclamada no interesse desse ministério (habitação, transporte individual e plano de saúde), sendo inaceitável alegação de eventual torpeza mútua em favor de quem também lhe deu causa.
zahlouth disse…
Tenho uma dúvida.
Um casal vai casar e contrata em uma determinada paróquia um padre para celebrar a cerimônia na residência dos noivos.
O padre falta ao evento e o casamento acaba não ocorrendo.
Pergunto:

1) Houve relação de trabalho ou de consumo? Trata-se de trabalhador autônomo (o padre)?
2) A justiça do trabalho é competente para uma possível ação de ressarcimento do valor pago e dano moral?
3) A ação deve se dirigir contra o padre ou em relação a paróquia?
JOSE MARIA disse…
Meu caro colega Zahlouth.

Agradeço o comentário.
Estou devendo um post sobre o tema.
Vou adiantar alguma coisa, conforme meu entendimento.

Paróquia tem personalidade jurídica de direito canônico (Can. 515 do Código de Direito Canônico), mas não tem personalidade jurídica de direito civil. Quem tem ao mesmo tempo as duas personalidades é a diocese (Can. 393).
Se os noivos procuraram um serviço paroquial - geralmente assim o é - foi contratada a paróquia, que por não ter personalidade jurídica de direito civil, age como filial da diocese. A relação contratual se estabeleceu entre a diocese e os noivos.

E assim há de ser porque não houve, nesse caso, contratação com um trabalhador autônomo, mas sim com uma pessoa jurídica (a diocese), que prestará o serviço religioso por qualquer um de seus sacerdotes (o Ordinário local, o pároco, um sacerdote ou diácono delegado, conforme Canônes 530 e 1108), que celebrará o sacramento do matrimônio (Cânones 1055 a 1062). Excepcionalmente, onde faltar sacerdotes e diáconos, um leigo poderá receber delegação para celebrar matrimônio (Can. 1112).

Tenho a seguinte compreensão sobre esse falso dilema relação de consumo versus relação de trabalho: uma não exclui necessariamente a outra. Uma relação de consumo pode ser também uma relação de trabalho, como é o caso típico do trabalho autônomo, em que há prestação de serviço (trabalho) por uma pessoa física (trabalhador autônomo), fenômeno que é captado por dois ramos do direito, o do consumidor e o do trabalho e, por isso, é ao mesmo tempo as duas coisas (relação de consumo e de trabalho). Na compra e venda ou na locação de bem móvel ou imóvel, por exemplo, é evidente que só há relação de consumo.

No caso que você descreve a Justiça do Trabalho não seria competente porque o serviço religioso foi contratado com uma pessoa jurídica (a diocese) - representada pelo pároco - e não há lei estipulando tal competência (o art. 114 da Constituição da República exige lei para fixar tal competência). Lei há para a cobrança de honorários de advogado, que pode ser feita nos próprios autos (Lei nº 8.906). E, nesse caso que você descreve, não houve contratação de trabalho autônomo (presumo que o recibo foi dado pela paróquia). A indenização por danos materiais (ressarcimento) e/ou morais vai ter que ser resolvida na Justiça Comum estadual, onde a diocese deve ser demandada.
Aliás, há precedentes na justiça americana, naqueles famosos casos de pedofilia, em que não são os sacerdotes os réus, mas sim as dioceses.
De todo modo, como defendo a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, aceitarei de bom grado interpretações extensivas que sigam essa direção estimativa dada pelo constituinte derivado.
Mas continuo devendo um post sobre o tema.

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