De Mansilla de las Mulas

Estamos em Mansilla de las Mulas, às portas de León (dezoito quilômetros, um aperitivo para amanha cedinho). Desde Saint Jean, foram 448 quilômetros para trás e (mais 327 pela frente).
Ao sairmos de Carrión de Los Condes demos uma esticada de 17 quilômetros, sem água no caminho. O desgaste foi grande, as bolhas nos pés de Araceli aumentaram e tivemos que pernoitar em Calzadilla de la Cueza.
Ficamos no alberque do César, que tem uma noiva curitibana e o hospitalero é o brasileirísismo Sidney, bom baiano que se apresenta como Nenê. Era impossível prosseguir. Menos pelas bolhas e mais pela boa comida no restaurante do César (depois do menu do peregrino com vinho da casa, bom e farto, que atrai peregrinos e nem tanto, a moleza é inevitável) e pelo pedilúvio - água quente, sal e vinagre - do Nenê.
O albergue e o Nenê tem história curiosa, digamos assim. César tinha um hostal. Os brasileiros lotavam o hostal e César resolveu criar o alberque, que tem até piscina e cresce em número de leitos de forma exponencial. O primeiro hospitaleiro era um peregrino. Brasileiro, por supuesto. Acolhia bem os peregrinos depois desses 17 quilômetros sem água. Dava-lhes pedilúvios e massagens. Distribuía simpatia e solidariedade. Recebia donativos (os hospitaleros privados nao recebem gorjetas, mas sim donativos...). Conheceu uma peregrina brasileira. Fez economias o suficiente para comprar um apartamento em Sao Paulo. Casou com a peregrina. E foi substituído no albergue pelo seu irmao, o Nenê, que mantém a tradiçao da família.
Nenê largou um emprego de Chefe da Área de Recursos Humanos na construtura de um tio, em Salvador, e veio substituir o irmao no alberque. Primeiro como imigrante ilegal. Agora está legalizado. Tem dois anos que atende no albergue, sempre com a simpatia irresistível dos baianos e sendo confundido com marroquino. Quando bate saudades do feijao preto e da farinha de mandioca, pede emprestado o carro do César e dá uma pernada no Carrefour de León ou de Palencia e faz um estoque de trinta quilos. Se a farinha é graúda demais, ele passa no liquidificador. Mas nao fica sem uma e outro. Nao se acostumou com as alubias e as fabas (que sao excepcionais, mas diferentes do feijao preto). Sua família é barrageira. Viveu em Paulo Afonso, Sobradinho e Xingó. Seus pais vivem em Joao Pessoa - o pai é aposentado da CHESF - as coisas que os peregrinos deixam no alberque e nao sao reclamadas, um ano depois ele faz um pacote e manda para a mae fazer um bazar e distribuir em comida na periferia de Joao Pessoa.
O Caminho é assim. Tem uma mística que nao para de produzir bons exemplos.
Hoje o Caminho nao é só dos católicos, dos cristaos, dos religiosos. É de todos. É uma rota de paz e de solidariedade levada às ùltimas conseqüências. Enquanto digito este post, Laura, a simpaticíssima - e poliglota - hospitalera do Albergue de Mansilla de Las Mulas cuidou das bolhas de holandeses, alemaes e brasileiras (Araceli inclusive). Perguntada quanto era, nao aceitou receber nem donativo. Aceitou receber um abraço das pessoas que atendeu, sempre com muita alegria e descontraçao.
Deixamos para trás Terradillos de Templários (uma antiga encomienda dos Cavaleiros do Templo), Sahagún (a Cluny espanhol, lindíssima, mas que tivemos de passar batidos) e Bercianos, onde pernoitamos ontem.
Em Bercianos, outro exemplo de solidariedade. Fomos recebidos por Miguel (um voluntário valenciano) e Lídia (uma voluntária italiana). O alberque funciona na antiga casa paroquial. O primeiro gesto de Miguel - depois de advinhar que éramos brasileiros - foi oferecer um copo de água, um gesto precioso de acolhida crista. Carimbou nossas credenciais. Perguntei-lhe quanto custava e ele explicou-nos as regras do albergue. O alberque vive dos donativos dos peregrinos. Serve uma ceia para todos no restaurante e depois faz-se uma prece em várias línguas na capela. Pela manha serve café da manha para todos. Todos os peregrinos tem direito a isso, que é financiado pelo donativo dos peregrinos do dia anterior. Uma verdadeira corrente da felicidade. As louças sao lavadas pelos peregrinos. A receita da ótima sopa de lentilhas do Miguel dou depois. O vinho é comprado pelos peregrinos na bodega do Emiliano, que fica nos fundos do alberque, uns quatro metros abaixo do nível do chao. Temperatura ideal para os vinhos jovens da regiao.
Miguel cuidou das bolhas nos pés da Araceli. Só por isso ela teve como continuar no dia seguinte até aqui em Mansilla.
No início da noite - mas com o sol ainda alto - apareceu Jorge, o cura da paróquia. Jovem e simpático, falou com um por um dos peregrinos. Ele cuida de nove pueblos pequenos e vive em um deles, perto de Bercianos, mas fora do Caminho. Depois continuou sua visita aos paroquianos.
Cada dia me convenço que Goethe tinha mesmo razao: o caminho unificou e unifica a Europa. Hoje ele é apropriado sem cerimonia pela Uniao Européia, que denomina-o oficialmente de seu Itinerário Cultural. Todos os Governos locais fazem questao de apoiar o Caminho, com obras físicas e culturais. Mesmo quem está dividido, se une no Caminho. Bascos, navarros, riojanos, burgaleses, palencianos, leoneses ou castillanos, todos convergem no - para e pelo - Caminho.
Aqui em León parte da populaçao quer autonomia de Castilla. A campanha ganhou as ruas. Há um ato público para estes dias. Promete. Até o antigo nome - Reino de León - é agitado. Mas o movimento é por autonomia em relaçao à Junta de Castilla y León. As placas estao pichadas, sobrepondo o nome de Castilla e ficando só o de León. Nao parece ser um movimento tao forte quando o do País Basco. Mas anima as pessoas.
Amanha saímos cedinho para León, onde ficaremos metade do dia e pernoitaremos.
Ah, sim. Agradeço os comentários de Nilda, Lafayette e Arlem. E a nota do Juvêncio no Quinta Emenda.

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