De Santiago de Compostela, 775 km depois

Saímos cedinho de Pedrouzo, às 6:00 h, ainda escuro (caminhamos no bosque de eucaliptos procurando a trilha, as setas amarelas e os marcos de pedra com a luz do celular). Foram exatos 20 km sem parada para descanso. Às 11:20 h chegamos à Catedral de Santiago, já aliviados das mochilas, que deixamos no Alberque Acuario (trilha musical de Beatles, cheiro de incenso e meio New Age). Confesso que é emocionante entrar na Praza do Obradoiro - sob uma chuva fina - virar à esquerda e dar com a imponente Catedral românica, que nao conseguimos avistar do Monte do Gozo por conta da neblina. As endorfinas acumuladas ao longo de 775 km de atividade física, a média de seis ou oito horas diárias de caminhada, deixam agora uma enorme sensaçao de bem-estar. Agora compreendo como isso aconteceu com milhoes de peregrinos ao longo dos séculos. Endorfina e fé. Os ciclistas, muito mais exigidos fisicamente, sao exatamente os mais animados. É a hora dos encontros e reencontros das centenas de peregrinos que se conheceram ao longo do caminho, se comunicaram nas mais variadas línguas, foram solidários das mais variadas formas e agora estao todos em estado puro e pleno de alegria e felicidade.
Pregrinos sao diferentes. Agora sei exatamente o que é um dos direitos humanos fundamentais de última geraçao, o direito a alteridade, o direito de ser outro, o direito de ser diferente. Sei agora para além do conceito, lido e relido nos livros. Sei agora porque vivi, experimentei esse direito. Fui respeitado como tal e respeitei os outros diferentes, tornados assim iguais.
Vim em busca de mim e encontrei o outro. Encontrei-o em mim mesmo e nos outros.
Subimos as escadarias da Catedral com a lentidao dos fatigados e a tranquilidade dos que chegaram onde queriam, mesmo sem a certeza de que chegar. Sentamos na penúltima fila do primeiro conjunto de bancos, atrás de Felipe e Jussara, dois peregrinos paulistas. Aguardamos a missa solene.
No início da concelebraçao foram anunciados os grupos de peregrinos de todas as partes do mundo, de ônibus, a pé, de bicicleta ou a cavalo. A música vinha do imponente órgao e duas cantoras - uma delas uma freirinha de voz educadíssima e angelical - e na curta e erudita homilia o celebrante falou da porta do aprisco, por onde entra o pastor que as ovelhas reconhecem, referida no Evangelho de hoje. De passagem, lamentou a pobreza do castelhano, que nao tem uma palavra específica para cada porta, diferente do que ocorre com o latim e o grego.
Quase ao final, o botafumero - imenso turíbulo preso por corda no alto do transepto e tracionado por oito homens - perfumou as naves com incenso, que nas palavras do celebrante subia aos céus com as oraçoes de todos, como sempre, desde séculos. A habilidade dos homens que fazem o imenso turíbulo aumentar gradualmente a amplitude do movimento pendular é impressionante. É um ritual para nao esquecer. No ponto mais extremo do movimento pendular, a corda toca nas arcadas de cada lado do transepto. Diante dos inusitados aplausos - de turistas, creio - o celebrante, em lugar de censurar, preferiu recebê-los como manifestaçao de felicidade e regozijo.
É um ritual impressionante, para crentes e agnósticos.
Em seguida fomos ao Escritório de Atendimento de Peregrinos receber a Compostela de Araceli (em latim) e meu certificado de boas-vindas da Arquidiocese (em espanhol), este destinado aos que fazem o Caminho por motivos nao religiosos.
Depois, com uma fome de 775 km, fomos à Casa Manolo (na Praza Cerbantes), para encontrar Jaime e Caetán (espanhóis), que ali nos aguardavam em companhia de um peregrino catalao e outro italiano (Roberto). Foi um banquete (mariscos e carnes), em qualidade e quantidade, incluído o bom vinho Alvariño. Para arrematar, um chupito em um café próximo com nossos amigos e voltamos à Catedral para abraçar o Apóstolo e visitar seu sepulcro, depois de enfrentar uma fila imensa.
Nesse meio tempo recolhemos informaçoes e começamos o plajemento para a continuaçao da peregrinaçao à Finisterre, o fim da Terra dos antigos, que talvez começemos amanha mesmo. Dentro de três ou quatro dias chegaremos ao mar, lançaremos a concha trazida de Saint-Jean de volta ao mar e completaremos nossa caminhada.
Como os antigos peregrinos, voltaremos renovados. O Caminho é como um imenso rio mítico onde ninguém se banha duas vezes em suas àguas, como dizia o filósofo. A cada dia mudamos, como muda o rio.
O Caminho é mesmo o itinerário cultural europeu. Nao porque o Conselho de Europa martela isso ao longo do Caminho. Mas porque é mesmo.
O Caminho é um mergulho na Europa profunda. Europa pré-histórica do Homem de Cro-Magnon (do qual descendem os bascos) e do Homo Antecesor de Atapuerca (do qual descendemos todos nós de DNA ibérico. A Europa romana de Astorga e das vias (calzadas) que chegaram até aqui e muitas vezes coincidem com o Caminho (antigo e atual) de Santiago. A Europa celta, com suas gaitas ancestrais. A Europa medieval e cavalheiresca das centenas de ruas, vilas, aldeias e pontes; de Roncesvalles a Orbigo; de Rolando e Suero de Quiñones. A Europa renascentista dos Médices. A Europa contemporânea da Uniao Europeia. A Europa pós-moderna de um inacreditável Museu de Arte Contemporânea fincado em um pueblo perdido nos páramos. A Europa unida e dividida em culturas e línguas. A Europa guerreira e pacifista. A Europa decaída e próspera. A Europa universal.
O Caminho é a síntese dessa Europa de todo o mundo.
Uma Europa que valeu a pena conhecer e descobrir que é surpreendentemente - tao boa ou melhor - que a Europa conhecida das viagens turísticas.
Como vou continuar mais uns dias caminhando, permito-me continuar devendo a lenda do galo.
Aguardem notícias do Caminho para Finisterre.

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