Os últimos dias do Caminho

Crônicas de viagem sao, como as cartas de amor, ridículas. Nao seriam de amor ou de viagem se nao fossem ridículas (Gracias, Pessoa).
Como descobri que ficou um buraco nestas crônicas ridículas, vou tapá-lo com o mesmo material. É para registrar os passos de Portomarín até Santiago, que fiquei devendo.
Para adiantar um pedaço de um trecho pesado de 40 km, avançamos de Portomarín até Gonzar, oito quilômetros depois, onde pernoitamos pela primeira vez em um alberque da Xunta de Galicia, um de uma rede construída para o Ano Xacobeo de 2004, no mais das vezes em velhas escolas rurais reabilitadas, como foi o caso desse. O albergue era bom fisicamente, com tudo o que se precisa para passar uma noite, mas nao tinha vida. Entrei e saí dele sem ver a hospitalera, uma servidora pública, presumo. Deixei um donativo e saí no dia seguinte cedo, com esse desinteressante registro.
Sob chuva e neblina, avançamos passando por Castromaior, Hospital de La Cruz, Ventas de Narón, Ligonde, Airexe, Avenostre, Palas de Rei, Casanova, Leboreiro e Melide. Em melide ficamos em outro albergue da Xunta, pior ainda que o primeiro, porque estava sujo e sem hospitalera (chamei-a por telefone, prometeu chegar em mais ou menos um quarto de hora). Mas para compensar deu para ir a uma pulperia - a Ezequiel - ponto e encontro dos moradores e dos peregrinos. Comi o melhor polvo de minha vida, cozido simplesmente em água quase quente, em um imenso caldeirao de cobre instalado na entrada, servido em pratos de madeira com muito azeite, sal e pimentao em pó. Para acompanhar um vinho tinto e pao galego. Araceli optou pelo bacalhau e comeu o melhor de sua vida (também coisa simples: uma posta imensa cozida com batata e pimentao, com muito azeite de oliva). Nas mesas e bancos corridos, os amigos peregrinos feitos ao longo do Caminho. Cézar Toledo, nosso amigo juiz do trabalho, me recomendara essa pulperia. Valeu, Cézar.
No dia seguinte enfrentamos os 33 km que separam Melide de Pedrouzo, jà às portas de Santiago.
Sem chuva, com alguma neblina e boa temperatura para caminhada, passamos por vales e altos - os rios correm para o Sul e o caminho para o Oeste - topando com cidades e pueblos como Boente, Castañeda, Ribadiso da Baixo, Arzúa (gravem este nome, pois o queixo com denominaçao de origem controlada daqui vai acontecer), Salceda e Santa Irene.
Caminhamos por perfumados bosques de eucaliptos.
Aqui os cereais - milho principalmente - eram guardados em construçoes típicas, os hórreos. Os mais antigos parecem um imenso cesto feito com galhos de salgueiro, cobertos com palha. Os mais recentes - de um século, mais ou menos - sao feitos de pedra e madeira, cobertos de telhas. Parecem sepulcros. Alguns sao simples, outros mais elaborados. Agora sao parte da decoraçao das casas e tem outros usos (vi um que é usado para guardar os botijoes de gás). É o que tem de mais típico da arquitetura popular da regiao, agora apropriado pela arquitetura erudita, digamos assim, como elemento decorativo. Já sei que os hórreos do Caminho para Finisterre sao bem elaborados.
Com este relato tapo um buraco que deixei inadvertidamente.
Nao sem antes registrar que o alberque da Xunta em Pedrouzo é excelente e sua hospitalera, Obdulia, gente finíssima, que recebe pessoalmente os peregrinos, carimba as credenciais e ajeita a situaçao de cada um. Para nós conseguiu um quarto duplo, onde ficamos só nós dois. E ainda indicou um banheiro praticamente privativo. A cozinha é igual aquela dos programas de culinária da televisao. Duchas impecáveis e banheiros limpos. O restaurante (comedor) espaçoso e confortável. Contribuímos com trabalho voluntário - ajudando na limpeza - e um donativo anônimo deixado na caixinha.
Valeu, Obdulia. Vida longa para você e para seu albergue.

Comentários

Aldenor Jr disse…
Alencar e Ara,

Parabéns pela conclusão da longa caminhada.
À distância, nesses trinta e poucos dias, acompanhei e torci por vocês.
Que a peregrinação pelas terras de Al-andalus e Sefarad façam de vocês pessoas humanas ainda mais extraordinárias.
Com um abraço afetuoso.

Aldenor Jr
Belém-Pará
JOSE MARIA disse…
Muito obrigado, meu caro amigo, por mim e por Araceli.

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