Cotas (5)
Por indicação do colega Zahlouth, transcrevo abaixo artigo do Reitor Alex Fiúza de Mello sobre o tema, com ele concordando que a leitura vale a pena.
Ações afirmativas e a polêmica das cotas na Universidade brasileira
Alex Fiúza De Mello
Reitor da UFPA
Muitos países, antes do Brasil, optaram por utilizar políticas de ações afirmativas para minimizar desigualdades sociais de natureza estrutural, insolúveis em curto prazo, em reação a protestos de rua e pressões junto às instâncias estatais movidos por segmentos das categorias populares interessadas (trabalhadores, negros, mulheres, homossexuais etc). O caso mais famoso é a resposta americana à luta conduzida pelos negros em prol de uma maior igualdade de oportunidades nos EUA, na década de 60 do século passado, e que resultou, dentre outras medidas, na instauração justamente de uma política de cotas nas Universidades daquele país.
Assim tem sido a história das conquistas democráticas na sociedade capitalista moderna, desde a Revolução Francesa de 1789. Os direitos e as oportunidades sempre resultaram de lutas populares de longo prazo - muitas delas sangrentas - e da conseqüente reforma das mentalidades, base simbólica de sustentação dos novos padrões institucionais e fundamento dos sucessivos re-ordenamentos da ordem jurídica, vigentes em cada conjuntura e contexto.
A adoção do sistema de cotas pelas Universidades públicas brasileiras, matéria indubitavelmente polêmica, não foge à regra. Decorre da pressão - legítima - do movimento negro por maiores oportunidades de ascensão social, num país geneticamente comprometido com quatrocentos anos de escravidão africana e indígena e ainda envolto nas seqüelas da discriminação racial, do processo, herdadas. À pergunta por que seriam justas as cotas sócio-raciais nas Universidades Públicas, respondem a grosso modo, os defensores dessa tese, que a correção parcial das desigualdades por ações afirmativas não pode ser considerada um privilégio perante a lei, a considerar-se o descompasso entre os princípios constitucionais formais (igualitários) e a efetiva condição das várias classes sociais no jogo real das oportunidades (desiguais). Em oposição, os argumentos da inconstitucionalidade da medida afirmam justamente a contra-tese, reputando discriminatória a seleção por raça ou renda ("todos são iguais perante a lei") e argumentando que o que precisa ser avaliado no estudante, na perspectiva de uma formação universitária, é o conhecimento adquirido e não a sua cor ou a sua origem social.
A polêmica - independentemente do lado em que se situe cada interlocutor - tem, não obstante, uma grande virtude: coloca na ordem do dia, com o devido destaque e virulência, a questão mais crucial - e de enfrentamento inadiável - da sociedade brasileira neste início de século: a falência da escola pública. Houvesse já sido resolvida esta pendência vergonhosa de nossa agenda republicana - a exemplo de outros países que, justamente pela revolução educacional, alcançaram patamares invejáveis de desenvolvimento - não estaríamos hoje, paliativamente, debatendo cotas e ações afirmativas, espécie de "jeitinho brasileiro" perante a nossa incapacidade política de priorização das reais transformações.
Este é o ponto de intercessão que, partidários ou críticos do sistema de cotas, todos concordam: há que se resgatar, urgentemente, por políticas dirigidas - essas, sim, afirmativas! - e orçamentos adequados, a qualidade do ensino na escola pública! Só assim todos terão, perante a vida (e não só perante a lei), as mesmas oportunidades, o mesmo nível de cidadania, prevalecendo, então, apenas o critério do talento na seleção à educação superior - como, de resto, nos demais processos e aspectos da dinâmica social.
A política de cotas não pode ser instalada para ficar, senão para mediar, temporariamente, essa longa travessia em favor de uma nação mais democrática e menos desigual. Se ela servir para denunciar e apontar as grandes lacunas do sistema educacional brasileiro e ajudar na sua superação, ela terá sido oportuna e vitoriosa. Se ficar apenas nisso, nas cotas - na perenização da discriminação às avessas -, sem a transformação da escola pública, ela terá fracassado. O resto é ilusão, esquerdismo infantil, retrocesso civilizatório, com doses indisfarsáveis de oportunismo populista.
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