A Senha de Armando Mendes


Abro ala para mais um luminoso discurso de Armando Mendes, pronunciado ao receber mais uma homenagem, merecida, como todas.

O CAMINHO DE PARAUASSU

Fala geral de agradecimento

Econ. Armando Dias Mendes

Autor de A invenção da Amazônia

Ao receber a láurea honrosa que porta o nome do eminente  amazônida, amazonólogo e empreendedor Samuel Benchimol, em meu nome e no nome de todos os laureados associo-me ao justo tributo à sua memória.

E procuro, de algum modo, corresponder à distinção recebida, dizendo um pouco da minha saída em campo na busca de uma utopia amazônica plausível e factível. E essa busca traça uma rota, o “Caminho de Parauassu”.

1. Aos 5 de junho de 1888, no Parlamento do Império, deputado de nome João Penido, obviamente não amazônida, interpelou o colega Mâncio Ribeiro, do Pará:  “Onde é essa Amazônia de que o nobre deputado  tanto tem  fallado?”

Já ao fechar 1999, pesquisa revelava que as três ‘marcas’ mundialmente mais conhecidas eram Jesus Cristo, a Coca-Cola e a Amazônia. Alguma coisa acontecera, no ínterim, capaz de explicar por que e como uma região, antes desconhecida dentro do próprio país, se tornara o espaço natural e social mais visível na face da terra. Essa alguma coisa foi a transformação do ecúmeno global que, tendo destruído grande parte das florestas nativas ao redor do mundo, faz da hiléia amazônica a maior e mais relevante selva primitiva remanescente.  Equivale a perto de um quarto das matas originais poupadas – e em termos relativos tende a ganhar importância maior – o que a converte na esperança ultima de preservação da vida no planeta. A tanto autoriza o conhecimento crescente – ainda incipiente – da biodiversidade que abriga. E também o reconhecimento do papel chave do enorme caudal de água doce líquida potável que acumula. Assim, é compreensível que ela se tenha convertido no campo de liça e na faísca que incendeia a cobiça universal. A transformação da sua imagem ao redor do mundo consolidou o enigma e instalou o paradoxo que torna a Amazônia degradada no alvo e estigma da ira mundial, uma espécie de Geni, a apedrejada -- aquela do Chico Buarque – mas globalizada. Isso, por um lado. E pelo outro, converte a Amazônia preservada no objeto de culto e anima derradeira da humanidade. Algo próximo da Amélia, a “mulher de verdade” que trabalhava com fome – aquela de Mário Lago -- também em escala planetária.

Nem uma coisa nem outra é a imagem do caminho a percorrer e, contudo, é ambas as coisas. E assim o paradoxo assume o feitio de oxímoro.

2. Como os brasileiros em geral – os amazônidas e principalmente os  não amazônidas – lidam com semelhante perplexidade? Em maioria, lidam mal.

Cultivam no mundo afetivo uma epidérmica simpatia ufanista pela Amazônia, seu imaginário e seus mistérios. No mundo efetivo flutuam, desarvorados, entre dois fundamentalismos nefelibatas: o ecológico e o econômico. O primeiro, mendaz e arrimado em Euclides de cem anos atrás  sustenta que no cenário majestoso o homem é ainda um “intruso impertinente”. O segundo, voraz, pretende que o puramente natural é que é abstruso e é inevitável dominá-lo – porque assim está escrito (Gn 1,26) – e urge transfigurá-lo de fútil em útil. Mas se décadas atrás havia um ou dois milhões de brasileiros “amansando o deserto”, hoje somos 25 milhões, e pois, deserto ele  já não é. Os dois fundamentalismos são mutuamente excludentes. Com efeito, e só para argumentar, o modelo extrativista – o jardim a ser cultivado e guardado, como determinado em outra passagem da escritura citada (Gn 2,15) -- se estendido aos 25 milhões exigiria um Éden ideal, com superfície territorial cinco vezes maior do que o real. O modelo industrialista, ao seu turno, precisaria de pelo menos uma dúzia de pólos manufatureiros similares ao manauara para abarcar a totalidade dos amazônidas, com fatais rebatimentos na textura  econômico-social, espacial e política do país.

Longe de serem duas possibilidades antepostas,  são duas absurdidades de soma zero.

3. Que coisas tenho (re)buscado, na contramão da história do passado, em busca de sólidos alicerces para a história do futuro?

Coisas simples, todavia densas e em si mesmas tensas. E  em alguns aspectos são imensas. Tais como:

Reconhecer que a Amazônia não pode ser mera extensão, mas deve tornar-se clara intenção nacional. Reta intenção, de preferência. 

Logo, assumir que o clamor de Parauassu não configura questão regional  mas questão nacional de primeira linha.

E disso deduzir que a sua preservação e valorização longe de ser favor facultativo, constitui  dever impositivo do país.

Suplantar, para tanto, o caráter bi-polar, contraditório e ambíguo da postura do Estado nacional frente à região.

Pugnar, em coerência, para que as ações de governo na Amazônia sejam, basicamente, ações pela Amazônia.

Entranhar nos fundamentos dessa Agenda ou caderno de encargos o princípio fundamental de que a Amazônia suporta usos,  rejeita abusos.

Decidir para valer que às metas regionais correspondam modos, meios e métodos quantitativa e qualitativamente compatíveis.

Perceber que a metanóia regional a perseguir passa pela nacional. Pela conversão nacional, sincera e efetiva à Amazônia.

Levar a que o Estado do Brasil devote ao Estado do Grão-Pará amor benevolente, não concupiscente. Atitude de guarda, não de domínio.

E enfrentar o desafio de manter a Amazônia de pé -- a sua natura e a sua cultura -- todavia atuantes, não expectantes.

Praticar, enfim, fidelidade aos dois imperativos categóricos do momento: o envolvimento com o hábitat, o desenvolvimento do habitante.

E ajudar a engenhar as mudanças de hábitos requeridas para a sustentabilidade da naturalidade, e em última análise, da sociedade.

Inscrever, em suma, com pertinência, a suma relevância da Amazônia nessa Agenda e nela perseverar com pertinácia.

Tanto equivale, é certo, a inventariar o potencial amazônico, mas sobretudo a inventar-lhe um futuro melhor. E inovar, com apoio em uma forte vontade política, não só dos políticos mas da polis nacional.

Uma vontade coletiva, cidadã, cívica. Esse, o almejado paradigma.

4. Esse o ritornelo que entôo há décadas, repetidas vezes com essas mesmas palavras.

Esses, os argumentos expostos em alguns livros e muitos outros escritos. E muitas falas proferidas em público e em privado, em solilóquios e colóquios, arredio a circunlóquios. Partes dessa meditação recorrente vieram a cair prematuramente no domínio público. Que assim seja.

Outras são reproduzidas aqui e ali aparentando ineditismo por novos descobridores e inventores indígenas e alienígenas, e sejam bem-vindos. São encontradiças junto com seus descobrimentos, seus inventos e seus deslumbramentos em lugar de honra nas suas Relações, relatos, relatórios.

As utopias de cada momento, porém, são atravessadas por apatias que varam todos os momentos. Para sacudi-las é que iniciativas como esta -- e Samuel Benchimol é o seu apropriado ícone – são aptas. Provam-no as distinções proclamadas nas áreas ambiental, social e econômico/tecnológico.

Dignificado e estimulado, resta-me – falando uma vez mais por todos os agraciados – saudar respeitosamente os idealizadores e realizadores do Prêmio. A comenda pessoal, essa eu a incorporo com singeleza ao meu currículo já em preocupante contagem regressiva. E prossigo na incessante caminhada no Caminho do Parauassu ou Grão-Pará, ou Rio Grande das Amazonas. Ao fim e ao cabo a Amazônia.

Esse, o caminho a palmilhar incansavelmente. Esse, na verdade, o caminho líquido e certo em que é preciso não se deixar levar de bubuia no remanso e muito menos na pororoca. Nele cumpre navegar com uma boa carta de marear, posto que estamos postos sobre o Rio-Mar. Pois navegar – e agora sou eu que vou de bubuia com Pessoa -- navegar é preciso.

Como dizia a seu modo, em outro contexto vivencial, filho meu de nome Aluísio – já por Deus levado faz tempo, Deus seja louvado – mais do que existencialistas tardios precisamos ser ‘insistencialistas’ antenados.

A senha é essa: não desistir. Insistir, insistir, insistir.

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