Notícias do Caminho - de Belorado a San Juan de Ortega

Terça-feira, 27 de abril de 2010. Antes das sete da manha o café comunitário no refeitório multinacional do albergue Cuatro Cantones tem a animaçao e a algaravia de sempre. Todas as línguas sao faladas e todas sao compreendidas, mesmo por monoglotas. Um fenômeno. Pouco a pouco os peregrinos vao dando o último gole de café e logo o toc-toc dos cajados se faz ouvir na rua medieval que estrutura a cidadezinha desde tempos antigos, muito antigos. Faz frio, o que é bom para caminhar. Agora cada um tem seu ritmo. Eu preciso caminhar rápido, pois sinto frio e tenho que me aquecer logo. Preciso produzir endorfinas que garantem a alegria do Caminho. Cada um com sua adiçao. A minha é essa. A de minha amiga ainda é a nicotina. Passamos pelo rio Tirón e nos internamos nas planuras de Castilla, com seus trigais verdes. Outra vez as gotículas de orvalho na pontinha das folhas de trigo e de feno acompanham minha comprida sombra, fazendo um prolongamento suavemente dourado neste oceano verde ondulado a perder de vista. Uma hora mais ou menos de caminhada e passo por Tosantos. O albergue é uma casona antiga com dois canteiros de tulipas vermelhas de cada lado da porta. Quase dois quilômetros mais adiante passo por Villambistia e a manha vai chegando perto de nove horas, encurtando minha sombra, ora na frente, ora no lado esquerdo, mas sempre apontando como uma bússula para o Oeste. A subida é suave, imperceptível. Antes de Espinosa del Camino topo com as ruínas do monastério de San Felices, na beira da estrada de terra, no meio de um trigal. No meio da encosta está Villafranca Montes de Oca, cuja história se confunde com a do Caminho e das lutas contra os mouros (no último quartel do Século XI, quatrocentos anos antes de Colombo chegar ao Caribe e Cabral ao Brasil). Guias medievais já citavam este lugar. Mas o que me lembro bem mesmo é do restauralte El Pájaro, um reduto de caminhoneiros justo no cruzamento que o imenso cartaz diz que é um lugar de muitos acidentes. Eu e Araceli paramos aqui em 2007, em uma manha cinzenta e fria, ameaçando chuva. Os mesmos atendentes, o mesmo café com leite, a mesma tortilla. Recompostas as forças, encaro a encosta que vai me levar ao Alto de La Pedraja, cerca de 1.150 m acima do nível do mar. Do lado esquerdo da trilha oferendas florais indicam que ali tombou um peregrino. Como os soldados, desconhecido. Lá no alto, no meio do pinhal, um monumento aos caídos de 1936. Um simples menir de granito, com uma pomba estilizada e o ano de 1936 em aço inoxidável. Lembro da luta de agora, entre o juiz Baltasar Garzón e os franquistas. As cicatrizes do fascismo franquista nao fecharao tao cedo nesta Espanha feita de uniao e divisao. Agora tenho doze quilômetros no meio de pinhais até chegar a San Juan de Ortega, por onde passei direto em 2007, com tempo apenas para um a foto e um dedo de prosa com o hospitalero brasileiro que curava angústias existenciais nessa atividade.

Estou caminhando há muito tempo ouvindo barulho de motosserra, da autopista e de um trator ao longe. Encontro, no mesmo lugar de 2007, um grupo de peregrinos franceses. Com crachás e lenços. O destino, agora sei, é o monastério.

De repente, emoldurado por dois pinheiros e um trigal, aparece o monastério. Este é meu destino hoje.

San Juan de Ortega nasceu aqui perto. Ele ajudou Santo Domingo de La Calzada a construir estradas (calzadas), pontes, igrejas e hospitais para peregrinos. Quando morreu em 1163 foi enterrado aqui, justo no lugar para onde ele se recolhera depois de peregrinar a Terra Santa. Ficou anos aqui acolhendo peregrinos. Trezentos anos depois a rainha Izabel, a Católica, peregrinou por aqui, em busca da fertilidade perdida (San Juan tinha boa fama nesse tema). Parece que deu certo, pois a raínha, agradecida, mandou construir este monastério fantástico, ampliando a igreja românica que hoje é monumento nacional e destino de peregrinos e visitantes. Hoje, por exemplo, estao por aqui os peregrinos franceses, um grupo que chegou de ônibus e outro grupo de estudantes. O albergue ainda está fechado. Ao lado do banco, tomando sol, uma mochila deixada pelo transportador. Coloco a minha bem do lado. E constado que o Caminho tem outra ética, que permite essas confianças. Sabemos todos que ninguém tocará nessas mochilas, a nao ser o próprio dono ou o hospitalero quando abrir o albergue. Encontro alegre e feliz Alexandre Bitar, o peregrino brasileiro que com nossos amigos portugueses seguem para Atapuerca. Na taverna da Marcela a pedida é a morcella de Burgos com salada e o vinho El Castilejo. Como este lugar melhorou. Tem até Internet (para azar meu, a barraquinha estava fechada). Nas quadro mesas da taverna a babel de sempre. Ciclistas alemaes consultam o guia próprios dessa tribo.

O albergue agora está aberto. O hospitalero voluntário é espanhol. Deixo as botas embaixo do banco corrido e vou para o monastério, que agora é o albergue. O clima é acolhedor e o espírito do padre José Maria preside este lugar. Em 2007 ele ainda estava vivo. Agora, uma emocionante carta de um peregrino japonês nos diz que seu legado é para sempre. Ele servia uma sopa de alho que fazia a fama deste lugar. Seus sucessores continuam servindo a mesma sopa. O albergue agora é administrado pela Fundaçao DIPER (Dignidad de la Persona). Tem calefaçao e água quente. Nao tem lavadora e secadora. Mas tenho tempo para lavar roupa na mao mesmo e secar ao sol no patio central do monastério. Bem no centro um vaso com hortênsias.

Agora posso visitar com calma a Igreja. Aqui tem duas jóias da arquitetura religiosa. A primeira é o mausoléu do santo, talhado em pedra. Gótico isabelino de uma delicadeza que me lembra a Sainte Chapelle. Outra jóia é uma descoberta recente: nos equinócios um raio de sol entra pela janela e ilumina o capitel onde uma talha em pedra representa a anunciaçao. É fenômenos que atrai cada vez mais interessados em arte. O dia claro faz deste lugar, perdido nestes ermos, algo mágico, que transcende ao religioso. E pensar que tudo isto já estava aqui anos antes do tal descobrimento do Brasil. É este um lugar para terminar uma etapa.

No final da tarde chegam meus amigos, bem a tempo de assistirem a missa dos peregrinos.

Depois da missa, a sopa de alho que alimenta o corpo e, sobretudo, o espírito. Outro hospitalero, francês de Montpellier, dá as boas vindas aos peregrinos de seis nacionalidades ou mais. Um senhor vestido de negro, barbas brancas, parecido com um rabino, vem tomar a sopa conosco e trazer o saco com os alhos da sopa do dia seguinte. É um ritual de comunhao, quase um sacramento. Cada um lava sua tijela e vamos completar o jantar com um prato de aspargos com vinagre e azeite de oliva na taverna da Marcela. Nas mesas apertadas a babel de sempre. Na nossa dois brasileiros, um empresário canadense e uma sueca.
Enquanto a noite chega conversamos, brasileiros e um casal amigo (um catalao de Barcelona e uma italiana).
Antes das dez da noite, segundo as regras do monastério, estamos todos dormindo o sono dos justos.
Sob as bençaos do padre e do Santo.

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