Notícias do Caminho de Santiago - de Arrés a Ruesta

O desjejum no albergue de Arrés no sábado, 17 de abril de 2010, reuniu os hospitaleros franceses Jorge e Jean, os irmaos zaragozanos Miguel e Luis, o inglês John, a dinamarquesa Jane e eu. Um pouco mais apressado saíra antes um peregrino que vi de relance. Jorge caprichava no cuidado com os peregrinos. A magia do lugar e os cuidados dos hospitaleros - eles sao da Federaçao espanhola - levou-me a aumentar o donativo, consciente que assim ajudo a manter este antigo hospital de peregrinos. Deixei uma mensagem no livro de peregrinos e despedi-me.

Como tenho o cuidado de alongar-me antes de iniciar a caminhada, fui o último a sair.

Mal iniciada a caminhada recebo uma chamada telefônica de minha amiga que cruzara na noite anterior os Pirineus vindo de Saint-Jean. Fiquei feliz, claro, mas preocupado com os riscos que correram o casal de irmaos e amigos. Claro que esse risco nao se deve correr nunca, mas eles correram e venceram e, agora, isso é o que importa. Acertamos para nos encontrar em Puente La Reina.

Mas fiquei tao preocupado que errei o caminho e tive que retornar para reencontrar a última seta. No Caminho - e na vida - sempre que ficamos sem indicaçoes segura devemos regressar até a última e retomar a rota certa. Poderia ter atalhado por um verde trigal, pois do alto avistava Jane caminhando pela estrada de terra, mas isso também nao é recomendável, pois se destrói as plantaçoes e as cercas. Caminho se faz pelo Caminho.

Diante da nova situaçao passei a cogitar de refazer meu planejamento para antecipar minha chegada a Puente La Reina. Planejava pernoitar em Artieda, mas resolvi chegar até Ruesta para adiantar 10 km.

Caminhava olhando para trás e vendo Arrés dissolver-se nas brumas matutinas até desaparecer completamente. Os trigais verdes convidam à solidao, à introspecçao. As flores amarelas da colza animam o caminhante e produzem um efeito de beleza indescritível, que nao se capta com fotografias, só com a retina.

O Caminho agora é uma suave subida até cruzar com as estradas para Martes e Mianos, que se avista ao longe.

Pouco antes de meio-dia estou em Artieda e agora sei que posso seguir adiante até Ruesta. Junto do cemitério encontro John descansando e planejando também caminhar até Ruesta. Já temos companhia, pois sei que os irmaos zaragozanos vao ficar por aqui. Inspeciono os pés, massageio com alcool de romero e passo o Compeed. Ao reiniciar a caminhada vejo que um cartaz me convida a levar pedras azuis até Santiago, contribuindo para a luta contra o aumento da represa de Yesa, que vai inundar 5 km do Caminho e algumas ruínas. As pedras que sobraram sao grandes demais e desisto de fazer isso, mas as que levo na mochila, trazidas de Belém, agora terao também esse signo.

Daqui em diante o Caminho vai ser todo ao lado da represa construída nos anos cinquenta e sessenta do século passado. Neste horário a água está verde azulada.

O Caminho a pé altera nossa sensibilidade e, admitamos, o mundo visto a pé é outro mundo. Os caracóis que sao esmagados pelos automóveis sao vistos e cuidados pelo caminhante. Fotografo mais um amarelo, parecido com as polimitas cubanas. Neste horário eles estao muito ativos e correm riscos. Vou encontrar depois muitos que foram apanhados por aves de rapina.

No Caminho essa sensibilidade nos faz prestar atençao na beleza das pequenas flores brancas, amarelas ou violetas e delas nos desviamos instintivamente. Algumas temos que fotografar para tentar guardar esses momentos mágicos. Mas a verdade é que as fotografias sao sempre decepcionantes, pois nao guardam o sentido e a emoçao de ver essas flores com os próprios olhos. Essas flores só os caminhantes veem.

As ruínas de uma ermida me indicam que estou chegando a Ruestas, que pouco depois aparece em uma encosta. A fortaleza é a primeira que aparece. O cenário me lembra o filme O Nome da Rosa. Ao caminhar a aldeia medieval abandonada quando foi construída a represa vai aparecendo e as ruínas impressionam.

Na entrada um mural indica que ali tem albergue, bar e camping. Um cartaz a meia altura indica que a CGT, a central sindical comunista, é dona da aldeia. Explico. Nos anos sessenta as terras foram inundadas e os moradores de Ruesta abandonaram a aldeia. Em 1988 o governo doou as ruínas para a CGT que reabilitou três solares. Dois sao albergues e um é um centro de convençoes. Os albergues e o camping sao explorados por um germe de cooperativa (basicamente um argentino, dois espanhóis e uma etíope). A vista da represa é lindíssima e as instalaçoes sao ótimas. Casa Valentin é o nome deste albergue
Do bar vem o barulho de peregrinos ciclistas. Depois de pagar o pernoite (23 euros com jantar e café da manha) e receber o carimbo, peço um Aquarius, a bebida isotônica que resultou de uma Olimpíada que é o ponto certo para repor as perdas de sais minerais. Como é tarde prefiro comer apenas um sanduíche de presunto e queijo com suco de laranja (5 euros). Tomo banho no albergue do lado, pois tem problemas com a água quente no que estou hospedado. Depois de mim chegam John e um espanhol que vira de relance em Arrés.
Como fiz a primeira bolha vou cuidar dela, costurando-a, como manda a tradiçao, e arrematando com umas gotas de Betadine. Deu certo.
Depois vou zanzar pela aldeia e a sensaçao de volta ao passado medieval é contagiante. Estou fora do meu tempo, de volta ao medievo. Com o sol se pondo, a aldeia é algo que nao sei bem como descrever. Só sei que nao é deste tempo. Como disse-me o zaragozano Luis, estas aldeias tem muita história e pouco futuro. A CGT promete fazer desta aldeia uma aldeia de futuro. E no que depender dos peregrinos, vai fazer mesmo, pois o sopro de vida que os peregrinos espalham é impressionante. Na biblioteca leio o material de divulgaçao e nao posso deixar de compreender porque o turismo dá tao certo aqui na Espanha e pouco certo no Pará. Temos muito o que aprender e caminhar, para chegar perto. Um perto que é muito longe.
O por do sol foi perto das oito da noite e no jantar sentamos juntos eu e o espanhol que agora sei ser um xará galego que vive em Barcelona. Dividimos uma garrafa de um vinho da Rioja (16 euros bem pagos) e aprendemos muito um com o outro. José, por exemplo, estava crente que a corrupçao diminuira no Brasil. E eu fiquei sabendo que há uma bolha imobiliária espanhola. Mais adiante - em Puente La Reina, onde estou agora - fiquei sabendo que um espanhol que se tornou notório - negativamente notório, esclareça-se - quando a bolha estourou agora está fazendo muito sucesso no Brasil, onde promete comprar Sauípe e investir em hidrelétricas.
Fui dormir logo em seguida, pois no dia seguinte teria que partir cedo para caminhar 40 km até Izco.
Dormir em meio a ruínas de uma aldeia medieval é, admito, uma experiência que nao tenho certeza se algum dia terei outra vez.

Comentários

Postagens mais visitadas