Noticias de Iquitos (4)

7 de dezembro de 2009, segunda-feira.
Acordamos cedo para voltar à laguna antes do café da manhã, agora para avistar aves.
Junto do pequeno porto vive um bando de ciganas, mais de dez, pelas minhas contas. Elas conseguem alimentos em uma área de poucos metros quadrados e parecem acostumadas com os visitantes. Quando jovens elas tem garras nas asas e isso parece provar que as aves evoluíram mesmo de répteis. As que vivem aqui são iguais as que viviam na colônia Benjamin Constant, quando ali ainda tinha pelo menos capoeiras e igarapés (ciganas vivem sempre nas margens de igarapés), cinquenta anos atrás.
Os sons da laguna agora são outros. São aves que marcam seus respectivos territórios. Parece que conseguem alimento em abundância, pois logo depois e na mesma margem, a laguna é habitada por um bando de anuns pretos, diferentes dos nossos, porque são maiores e tem uns tons azulados. Um martim pescador muito pequeno pousa sobre uma vara e antes de conseguir seu desjejum é importunado por nós e foge. Os olhos treinados de Luis, com ajuda de um pequeno binóculo, localizam uma preguiça, no alto de uma árvore (não é embaubeira, a Cecropia, dominante nas margens desta parte do Amazonas).
A laguna, que se liga a um afluente do Amazonas, de águas escuras, é mais bonita ainda pela manhã. É um espelho que reflete o azul do céu e a floresta. Gostei tanto que voltei no dia seguinte. E a noite também.
Depois do café da manhã iniciamos uma caminhada margeando o Amazonas. Tudo é novidade para espanhóis, coreanas e limenhas. Passamos por roças de mandioca e bananas, a base da alimentação dos moradores (não fazem farinha de mandioca, comem-na). É cultura de ciclo curto e tem que ser colhida antes das enchentes, que a cada dez anos atingem mais de três metros, como se nota pelas marcas nos troncos. Aqui se encontra a prova prática de que algum aproveitamento econômico de maior produtividade poderia ser encontrado para as várzeas da bacia amazônica, (afinal, os índios fazem isso há milênios) mas esse é tema que não parece sensibilizar os tomadores de decisão, tanto no setor público quanto no setor privado.
Na margem encontramos uma família que estava secando o arroz que acabara de colher, na várzea agora já cheia. Na ilha em frente vejo pelo binóculo que o arroz foi colhido e está sendo batido (trillado, como dizem aqui), para desgranar (usam varas para bater, como em Bragança). Aqui na margem dá para perceber que as águas chegaram quando a soca já rebrotava e se demorassem mais um pouco daria uma segunda safra. Essa família limpou a área em torno de uma imensa figueira, com enormes sapopemas, maiores do que as da samaumeira do Largo de Nazaré. Descansamos e fazemos fotos, deixando alguns soles ou dólares para a família, que agora tira parte de sua renda dessa árvore e com isso prova que a floresta em pé também rende dinheiro. Claro que não dá tanto dinheiro quanto certo tipo de arruda do Planalto Central brasileiro, mas isso são outros quinhentos mil reais.
Caminhamos mais um pouco até toparmos com a aldeia dos Yahuas, que se mudaram para cá depois que começaram a ter conflitos por territórios rio acima. Estão aqui há quinze ou vinte anos. Quando chegaram eram dez. Agora são trinta. Vivem da agricultura, pesca e da venda de artesanato para turistas. Nos esperam em uma espécie de centro de recepção de visitantes, onde exibem seu artesanato. Estão vestidos com seus trajes tradicionais, feito de fibras vegetais e penas. As mulheres usam uma saia vermelha e um bustiê de fibras, que colocaram quando chegamos. As crianças não vestem nada. O chefe nos recebe com uma arenga, replicada pela matriarca e traduzida pelo Luis (mais ou menos). Depois executam três números de dança, com flauta e percussão a tambor. Somos convidados para participar. Recuso gentilmente, mas os demais aceitam. Sinceramente, é um espetáculo triste, patético, este encontro de civilizações.
Depois o chefe faz uma exibição de tiro com zarabatana, em um boneco colocado a uns três metros de distância. Acerta com precisão a testa do boneco. Dois sevilhanos conseguem feito parecido. A sevilhana acerta as partes baixas do boneco.
Depois nos mostram artesanato, feito de cuia, madeira, sementes, fibras vegetais e escamas de paiche (pirarucu). É uma guerra de marketing entre as famílias. Topam vender ou trocar. Luis pede que se compremos de famílias diferentes. Compro uma máscara feita de cuia. Como Diego Rivera, gosto dessas máscaras tribais, nem sempre fáceis de transportar (a duras penas, tenho duas da Guatemala, feitas de madeira). Espero que esta dos yahuas chegue enteira a Belém.
Menos mal que o turismo ajuda estas famílias, mas fico com a desagradável sensação de ser um bwana. Sinceramente, não foi uma experiência agradável. E a julgar pelas caras dos índios, eles também não gostam muito disso, exceto as crianças, que fazem a festa com as balas e caramelos que a sevilhana distribui. Me senti melhor com os uros, que me pareceram mais resistentes culturalmente (afinal, eles resistiram e sobreviveram aos incas e aos espanhóis). Até mesmo com os tarahumaras, de Chihuahua (que resistiram aos espanhóis), me senti melhor.
A tarde saímos para pescar piranhas. Não consegui pescar nenhuma. E no pesqueiro que nos trouxeram conseguimos pescar umas três piranhainhas, uns bagrinhos e umas sardinhas. Outra vez o Pantanal é melhor opção para quem quer pescar piranhas e avistar jacarés.
Aguardamos o crepúsculo, que outra vez é lindíssimo. Aqui também o pôr-do-sol sobre o Amazonas é sempre uma grande atração.
Depois do jantar ponho a lanterna na cabeça e vou mostrar aranhas caranguejeiras para o casal limenha-espanhol no caminho para a laguna. Demos sorte, pois deu para encontrar algumas e conseguimos avistar dois lagartos (os olhos refletidos, bem entendidos). Mostrei para eles a Cruz del Sur (Cruzeiro do Sul), que não conheciam. Animados, resolvemos caminhar até a margem do Amazonas. Valeu a pena porque a noite estava linda, com muitas estrelas e muitos vagalumes, para alegria do espanhol que nunca tinha visto tamanha quantidade deles. Com a lanterna localizo uma rã fazia sua cantoria poucos metros adiante, sobre um capim dentro dágua. Outra estava em seco e ficou imóvel até ser tocada pela amiga peruana, sempre disposta a experiências sensoriais com os animais.
Na linha do horizonte dois clarões denunciam a presença de Iquitos e da refinaria de petróleo (esta região é o cenário de Pantaleão e as Visitadoras, de Vargas Llosa, que depois virou filme).
Esta viagem à América profunda está me deixando com a sensação de que chamar esta parte do mundo de América e ainda mais de latina é uma arbitrariedade histórica e geográfica. Por importante que tenha sido Américo Vespúcio para o mundo, América é uma designação européia para um mundo não europeu. E designar esta parte de mundo de latina é uma arbitrariedade que consentimos apenas pelo comodismo de ter uma palavra neolatina para reduzir tudo nela, mesmo que isso seja uma arbitrariedade. O Lácio é pequeno demais para servir de origem ao adjetivo deste continente. Faria mais sentido se, por outra arbitrariedade, o Cone Sul fosse designado de amazônico. Rio por rio, o Amazonas é infinitamente maior que o Lácio e tem muito mais relação com esta parte do mundo.
Mas é tarde demais para desconstruir essa arbitrariedade secularmente construída, como tantas outras.

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