Notícias do Caminho de Santiago - de Somport a Jaca

Alegria!
Esta é a palavra síntese do que sinto ao vencer a primeira etapa de 30 km da rota aragonesa do Caminho de Santiago, ao qual voltei ontem, três anos depois de tê-lo feito pela primeira vez.
Após 34 horas entre Belém e Pamplona, onde pernoitei dia 14 de abril (Hostel Hemingway) e mais duas horas de taxi até Somport (obrigado, Jorge, pela força), dei o primeiro passo junto ao marco inicial em Somport às 9:15 h, em companhia de um casal de peregrinos de Zaragoza, Fernando e Cristina, que poucos minutos antes avistara em Villanúa (um peregrino identifica o outro a quilômetros de distância). Eles chegaram no ônibus que traz alpinistas até Somport. Começo a meia altura, como recomenda Nietzche, em Gaia Ciência.
Eles se adiantaram um pouco enquanto eu alongava e enchia o cantil (camel bag). Logo, depois de caminhar alguns minutos sobre a neve apreciando a paisagem belíssima dos Pirineus nevados - a temporada de esqui termina esta semana e os ascensores já estavam funcionando - os sentidos aguçados - no Caminho todos os sentidos se aguçam, e até o olfato que havia perdido tempos atrás voltou milagrosamente - permitem ver da gransiosidade branca dos Pirineus nevados à delicadeza de um floco de neve perdido no meio da grama.
Logo encontro Fernando e Cristina e caminhamos juntos alguns minutos. Eles, como eu, vamos até Villanua, onde está seu carro. Eles vao dormir em Jaca e reiniciar em Villanua. Caminharao só até os limites de Aragón, em San Juan de la Peña. Percebendo que eu caminhava mais rápido, Fernando sugere que eu me adiante e deles me despeço com a saudaçao universal dos peregrinos e a promessa de reencontrar em Villanúa.
Caminho pela trilha bem sinalizada, agradecendo a cada seta, a cada marco de madeira, a cada milladoiro - montículos de pedras deixados pelos peregrinos que antecederam na rota - as maos anônimas e solidárias que vao me guiar até Santiado de Compostela e depois até Finisterre.
Às 10:55 h chego à imponente e decadente estaçao de Canfranc, esse mistério que impressiona todos que passam por aqui e ficam sem compreender como nesta paragem remota se construiu algo tao grandioso, agora abandonado e em arruinamento. Ela foi inaugurada em 1928 por Alfonso XIII e deveria ser um marco das comunicaçoes terrestres entre França e Espanha, mas está abandonada desde 1970, quando o descarrilamento de um trem destruiu uma ponte do lado francês e a linha foi interrompida, para sempre, ao que tudo indica. Só o rei e o empreiteiro que construiu saberiam explicar porque construir esta estaçao. No gradil da estaçao fitas revelam uma manifestaçao recente em favor da reativaçao da ferrovia. No escritório turístico peço informaçoes sobre a próxima seta a uma jovem e outra se adianta e me oferece um mapa com onde me indica a retomada da trilha dois quilometros mais adiante, depois do túnel. Competiam para ver quem me atendia melhor. Turismo levado a sério é isso aí. Agradeço e ao sair vejo que está chuviscando. Ponho o anorak e a capa de chuva. O dia está ótimo para caminhar. Temperatura agradável, sem sol e sem vento. O tempo nublado nao aumenta a beleza dos maciços pirenaicos. Até agora foram 7,2 km.
Retomo a trilha - belíssima - passo ao lado e abaixo de uma microhidrelétrica no Rio Aragón e caminho mais 4,4 km até Canfranc (pueblo). No caminho presto atençao nas flores delicadas que começam a nascer. Algumas já estao caindo quase um mês depois de iniciada a primavera. Outra microhidelétrica e logo avisto a Torre de Fusileros, um forte antigo. Chego a Canfranc precisando de banheiro e café, nao necessariamente nessa ordem. A senhora que me atende fala portunhol e depois de pedir um cafè Bonbon - com leite condensado - pergunto se ela é portuguesa. Surpresa! Ela é brasileira de Belo Horizonte e chegou à Canfranc tem um mês me mostra uma bandeirinha do Brasil e a genuína alegria de reencontrar um patrício. Se espanta em saber que vou caminhar mais ou menos 900 km. Me conta sua história. Ela veio a passeio com a mae a Zaragoza e encontrou Luis Lobato, com quem casou há quinze anos. Nao tem filhos, mas tem um casal de golden retriever que trata como se fossem. Um dia Pancho, o macho, levou um tiro de um pastor de ovelhas e ela gastou 3.000 euros para curá-lo. Para todos os que chegam ela me apresenta. Liga a TV na Record, onde vejo notìcias de enchentes no Rio. Me oferece mais café com bolo de chocholate. Ganhei uma hora conversando com Rosemei. Nao quis receber, de pura alegria. Convenci-a a aceitar uma doaçao de 5 euros para a Igreja local. Ela me deu um envelope para deixar o dinheiro que ela iria entregar par ao cura (cujas missas sao ajudadas por um ateu, que também é, via de regra, o único assistente). Anotou em um papel meu nome e o de Araceli, dizendo que ia pedir oraçoes ao padre para nós. Me ofereceu todos os seus telefones, até o da sogra, e me disse que qualquer coisa que acontecesse comigo, poderia indicar seu nome como responsável por mim. Foi emocionante a solidariedade de Rosemei. Ela será um desses personagens emblemáticos do Caminho de Santiago. Vai ser questao de tempo.
Me despeço dela, que agora tem a companhia do carteiro do lugar, que me indica o Caminho, passando pelo cemitério. Logo passo pela ponte medieval e ingresso na antiga calzada (via) romana, por onde passaram as sandálias (caligas) das legioes imperiais e agora servem aos peregrinos e trilheiros. Sao mais de 4 km de vestígios de calzada até Villanúa. Na trilha pisei em algo que parecia um graveto, mas achei macio demais e fui prestar melhor atençao. Era uma fila de lagartas que seguiam uma lider. Confesso meu constrangimento por maltratá-las. Logo adiante encontro a primeira lesma negra, luzidia, de uns oito centímetros. Encontrarei muitas ao longo do Caminho e elas crescerao bastante a medida que a Primavera avança. Pode ser mais um milagre, se nao de Santiago, mas da natureza com certeza. Chego à Villanua pelos lados, onde o belo casario medieval está sendo restaurado, como acontece ao longo do Caminho, que dá um sopro de vitalidade a estes até agora abandonados sítios. As fontes para peregrinos começam a aparecer, bem cuidadas, algumas com delicadas flores. O Ayuntamiento de Villanúa cuida bem da cidade e a sinalizaçao para os peregrinos é impecável. Os cartazes com informaçoes detalhadas para caminhantes, peregrinos ou nao, mostra o quanto temos que aprender com os espanhóis, em matéria de turismo. A coleta seletiva de lixo aqui é para valer, nao é papo furado. Atravesso o rio - con uns dois palmos de água, pelo degelo destes dias de primavera - por uma ponte nova, ainda sem cabeceira. Mais adiante topo com um caramujo amarelo de pouco mais de um centímetro, parecidíssimo com as polimitas de Cuba. Detalhes que passariam despercebidos fora do Caminho, nele temos tempo e cuidado para notar. Os símbolos do Caminho começam a se tornar constantes: esculturas, conchas, cartazes e as setas amarelas que me acompanham desde o primeiro passo.
Mais sete quilômetros de caminhada e pouco depois das 15 h passo por Castiello de Jaca, no alto de uma penha, ainda com forças para a arrancada final de mais de 8 km até Jaca, onde chego depois de enfrentar a última subida, pouco antes das 17:30 h. Jaca é uma cidade pequena e muito charmosa e agradável. Dois helicópteros aterrisam na Escola Militar. Passo no escritório de turismo e me indicam as conchas de latao no chao, que me levam até o impecável albergue municipal, onde sou recebido com alegria e cuidado. Chguei bem neste final de primeira etapa de 30 km. Recebo a cama 105, em alojamento que vou dividir com mais quatro ou cinco peregrinos, um deles de 74 anos de idade, que caminhou também desde Somport. Saio a procura de lavanderia, mas nao encontro lavanderia rápida. Vou ter que guardar a roupa suja. Compro um adaptador de tomadas e uma serra para fazer um ajusta. A serra vou deixar no albergue, em um cesto abaixo de um cartaz que diz mais ou menos o seguinte: deixa o que te sobra, pega o que precisas. Essa é uma preciosa liçao do Caminho e, pensando bem, deveria ser uma liçao para nossa vida toda. O centro histórico de Jaca está bem cuidado e nele temos de joalherias a ferreterias.
Saio para jantar no restaurante do Hotel La Paz. O menu do peregrino é uma sopa de lentilhas - daquelas que tem gente capaz de trocar a primogenitura - guisado de cordeiro e uma taça de vinho da regiao, que nao faz feio. Um pudim de sobremesa e a conta, gorjeta incluìda, sai por 10 euros. A garçonete - que atende no bar, no caixa e na cozinha - carimba minha credendial e me indica o supermercado, onde compro o café da manha e a água para a provisao do dia seguinte.
Por volta de dez da noite recebo uma ligacao de meus companheiros peregrinos de Belém que estao em Pamplona se preparando para iniciar sexta-feira a rota francesa, desde Saint-Jean.
Comecei bem o Caminho e agora vou enfrentar a segunda etapa de quase 25 km até Arrés.



INFORMAÇOES PARA PEREGRINOS
Hostel em Pamplona: Hostel Hemingway. Calle Amaya (Amaya Kalea), 26 izquierdo. hostelhemingway@hotmail.com. Javier é quem atende. Pode ser reservado pelo Hostelworld. Funciona direitinho.
Taxista: Jorge. Telefone móvil 609466476.
Bar em Canfranc: La Basilica, de Luis Lobato e Rosemei, mineira de Belo Horizonte.
Restaurante em Jaca: La Paz, Calle Mayor.

Comentários

Jônatas disse…
Amigo, estamos monitorando e torcendo pelo sucesso da sua jornada no "caminho". Abraços,

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