A Rota da Estrada de Ferro: de Capanema a Nova Timboteua
Saí cedinho de Capanema, do exato ponto onde havia chegado.
Caminhei todo o estirão da Barão de Capanema, exatamente por onde o trem passava. Vestígios dele só na lembrança e a curva que a avenida faz na saída. Passei no banco. Abasteci a caminhonete de apoio (Luciano sempre adianta-se três quilômetros e me espera). Fiz uma foto da Vara do Trabalho e lembrei-me de Arthur Seixas, o simpaticíssimo Presidente do Tribunal que mandou reformar o prédio da antiga Vara. Já na saída da cidade, na longa curva que fazia a estrada - agora é uma larga avenida, com canteiro central e ciclovia - sou alcançado pela equipe da Rede Paraense de Televisão, que fazem imagens e uma rápida entrevista. Despeço-me, peço para transmitir agradecimentos ao Rogério e Marcelo Bulhões e ao Alex.
O percurso para Peixe-Boi é um dos mais bonitos de se ver, mas o asfalto maltrata os pés. Por isso sempre que posso vou para o acostamento de terra.
Acertei em cheio ao fazer esta caminhada neste mês de janeiro. Os igarapés e igapós estão cheios. Os buritizais uma boniteza. Os juncais - ainda restam dois grandes, um em Peixe-Boi e outro perto de Livramento - estão verdinhos e prontos para a colheita. Agora é só cortar, murchar, secar e fazer esteiras. Quando passa a chuva os igarapés voltam a ficar com a água escura de sempre (exceto a Lagoa Azul do Baiano, dirá Lafayette). Neles se refletem a capoeira e os buritizeiros, que estão carregados (a safra deste ano vai ser grande, pelo que posso pressentir). Reitero: nossos buritizais tem mais boniteza que as veredas de Rosa. Mas ela só se apresenta para quem caminha. Não adianta passar de carro a oitenta ou mesmo a sessenta por hora. Não adianta para um instantinho para fotografar. Tem que caminhar para ver o buritizal se aproximando lentamente desde a linha do horizonte, chegar perto, ver cada um deles refletido no igapó, olhar para os cachos que estão avermelhando. Vai ver que a endorfina liberada pela caminhada ajuda.
Acho que o buritizeiro foi o que sobrou da mata nativa, o bosque primário. O najá também (em Bragança não é inajá, é najá). Deu sorte. É que não se pode fazer pasto ou roçado no igapó (mas quando seca até o igapó se queima). O buritizeiro é fascinante. Ele começa soltar os frutos ali por março. Os buritis tem densidade menor que a da água e flutuam. São levados pela correnteza até onde a enchente mandar. Algum animal leva um ou outro deles mais adiante. E onde fica, vira um buritizeiro. Generosa, a natureza entrega tudo para o homem. Até o fruto ela amolece (com o calor a polpa amolece e a semente tem a dormência quebrada, ficando pronta para germinar).
E contemplando a boniteza dos buritizais vou matutando sobre certas e tantas coisas. O buriti entrou na cadeira produtiva da Natura. À matéria prima a Natura agregou uma idéia: beleza feminina. Com essa simples adição de algo absolutamente imaterial, agregou valor econômico. A que taxa de agregação, não sei. Mas sei que não tivemos a idéia que ele teve. Não passamos da etapa primária, do consumo in natura. A Natura veio e fez a passagem. E fez bem feito. O ruim dessa história é que pouca renda fica na região onde os frutos são coletados, porque a agregação de valor é pequena. Como dizem os economistas, não é internalizada. Penso nisso enquanto vou passando pelos buritizais. Mas penso também que esse raciocínio vale para todos os demais produtos primários em que nos especializamos, do peixe (de Bragança) ao minério (de Carajás); da madeira ao boi em pé, da pimenta ao açaí etc e tal.
Sou tirado desses pensamentos pelo vôo da garça real, que tentei captar (na telinha da câmera digitalnão dá para ver o resultado). As garças estão se virando bem com os igapós cheios. As galinhas d'água também. E os gerebas recolhem as sobras (acho que eles fizeram uma divisão com os outros urubus: estes ficam com as cidades - matadouros sobretudo - e os gerebas cuidam das matas, pastos e igapós).
Uma igrejinha no caminho merece uma foto.
Uma cabeça de passarinho no asfalto também (acho que foi degolada por um carro). É uma pena, mas tem muito disso na estrada. Os sapos estourados, então, nem se fala.
Aliás, em Bragança, pelo fato de o sapo atropelado colocar as vísceras para fora sempre pela enorme boca, quando alguém é sovina diz-se que o dito cujo é mais arrochado que aquilo de sapo.
Na primeira ponte antes de Peixe-Boi identifico à direita o aterro por onde passava o trem e uns quatro tocos da velha ponte de madeira, baixinha, quase rente à linha d'água. Na ponte atual, da rodovia, tem uma verdadeira colônia de urupés vermelhos cor de coral. Uma outra boniteza.
No balneário que faz as delícias dos moradores e visitantes, duas pichações do bem: FAÇA SEXO SEGURO e PRESERVE NOSSO PATRIMÔNIO NATURAL. O pimeiro apelo pode ter chegado a tempo para muita gente. O segundo chegou tarde para o mamífero que emprestou seu nome à cidade. Dele só restou o topônimo. E pensar que coisa de cinqüenta anos atrás ainda tinha peixe-boi em Peixe-Boi. Em Bragança ainda cheguei a comer peixe-boi trazido pelos meus parentes (sou do tempo em que tartaruga marinha era vendida vez por outra no cais de Bragança). E minha mãe usou couro de peixe-boi para fazer emplastro e colocar sobre uma hérnia umbilical que tive quando criança. Santo remédio. Fiquei curado para o resto da vida.
O que aconteceu com o peixe-boi de Peixe-boi vale para todos os nossos recursos naturais em toda a Amazônia. Aqui é um lugar para se aprender o que fazer e o que não fazer. Volto ao tema outro dia.
No restaurante indaguei pela Estação. Descaracterizada, só perguntando ou conhecendo se descobre onde ela está. É pena. Mas pelo menos está de pé. Soube que uma ONG recupera e difunde a memória da Estrada. Vou voltar outro dia para procurar o animador dessa ONG, que mora em Nova Timboteua, pelo que entendi.
Sigo viagem. O asfalto esquenta. O desgaste é grande. Talvez por isso não tenha percebido grandes belezas até Nova Timboteua. Mas notei uma cruz azul com as iniciais R. A. A., de um jovem que ali encontrou seu fim poucos anos atrás. E a Base de Operações Pedro Teixeira, do Exército.
Cheguei a Nova Timboteu em plena canícula das duas da tarde (agora sei o que é canícula das duas da tarde, na vera). Fátima, a dona do restaurante a quem na ida prometera voltar caminhando de Bragança saudou-me com genuína alegria, abraçou-me, felicitou-me e me serviu guaraná (Tuchaua, em garrafa de cerveja, que só encontro por aqui). Passo rapidamente pela casa da Dona Nazaré, volto ao comércio do meu primo Aldemiro Alencar, seu genro, e acerto com Mira o caminho da casa dele, como combinara por telefone (muito obrigado, Aldinho). Na imensa casa nos arredores da cidade, espera-nos a filha de Mira, Vivi, que segura a cadela e faz as honras da casa (obrigado, Mira e Vivi).
Cuido das bolhas, contabilizo quilômetros com Luciano - no dia seguinte vou encarar coisa como 32 quilômetros até Igarapé-Açu - converso com Mira, vejo TV, leio jornal de ontem e durmo direto até o amanhecer.
Não deu para ir ao cyber.
Por isso só agora, em Igarapé-Açu, atualizo o blog.
Fico devendo o post com o trecho de hoje.
E sigo amanhã cedinho para São Francisco.
Nos reencontramos amanhã, espero, caso encontre um cyber.
Caminhei todo o estirão da Barão de Capanema, exatamente por onde o trem passava. Vestígios dele só na lembrança e a curva que a avenida faz na saída. Passei no banco. Abasteci a caminhonete de apoio (Luciano sempre adianta-se três quilômetros e me espera). Fiz uma foto da Vara do Trabalho e lembrei-me de Arthur Seixas, o simpaticíssimo Presidente do Tribunal que mandou reformar o prédio da antiga Vara. Já na saída da cidade, na longa curva que fazia a estrada - agora é uma larga avenida, com canteiro central e ciclovia - sou alcançado pela equipe da Rede Paraense de Televisão, que fazem imagens e uma rápida entrevista. Despeço-me, peço para transmitir agradecimentos ao Rogério e Marcelo Bulhões e ao Alex.
O percurso para Peixe-Boi é um dos mais bonitos de se ver, mas o asfalto maltrata os pés. Por isso sempre que posso vou para o acostamento de terra.
Acertei em cheio ao fazer esta caminhada neste mês de janeiro. Os igarapés e igapós estão cheios. Os buritizais uma boniteza. Os juncais - ainda restam dois grandes, um em Peixe-Boi e outro perto de Livramento - estão verdinhos e prontos para a colheita. Agora é só cortar, murchar, secar e fazer esteiras. Quando passa a chuva os igarapés voltam a ficar com a água escura de sempre (exceto a Lagoa Azul do Baiano, dirá Lafayette). Neles se refletem a capoeira e os buritizeiros, que estão carregados (a safra deste ano vai ser grande, pelo que posso pressentir). Reitero: nossos buritizais tem mais boniteza que as veredas de Rosa. Mas ela só se apresenta para quem caminha. Não adianta passar de carro a oitenta ou mesmo a sessenta por hora. Não adianta para um instantinho para fotografar. Tem que caminhar para ver o buritizal se aproximando lentamente desde a linha do horizonte, chegar perto, ver cada um deles refletido no igapó, olhar para os cachos que estão avermelhando. Vai ver que a endorfina liberada pela caminhada ajuda.
Acho que o buritizeiro foi o que sobrou da mata nativa, o bosque primário. O najá também (em Bragança não é inajá, é najá). Deu sorte. É que não se pode fazer pasto ou roçado no igapó (mas quando seca até o igapó se queima). O buritizeiro é fascinante. Ele começa soltar os frutos ali por março. Os buritis tem densidade menor que a da água e flutuam. São levados pela correnteza até onde a enchente mandar. Algum animal leva um ou outro deles mais adiante. E onde fica, vira um buritizeiro. Generosa, a natureza entrega tudo para o homem. Até o fruto ela amolece (com o calor a polpa amolece e a semente tem a dormência quebrada, ficando pronta para germinar).
E contemplando a boniteza dos buritizais vou matutando sobre certas e tantas coisas. O buriti entrou na cadeira produtiva da Natura. À matéria prima a Natura agregou uma idéia: beleza feminina. Com essa simples adição de algo absolutamente imaterial, agregou valor econômico. A que taxa de agregação, não sei. Mas sei que não tivemos a idéia que ele teve. Não passamos da etapa primária, do consumo in natura. A Natura veio e fez a passagem. E fez bem feito. O ruim dessa história é que pouca renda fica na região onde os frutos são coletados, porque a agregação de valor é pequena. Como dizem os economistas, não é internalizada. Penso nisso enquanto vou passando pelos buritizais. Mas penso também que esse raciocínio vale para todos os demais produtos primários em que nos especializamos, do peixe (de Bragança) ao minério (de Carajás); da madeira ao boi em pé, da pimenta ao açaí etc e tal.
Sou tirado desses pensamentos pelo vôo da garça real, que tentei captar (na telinha da câmera digitalnão dá para ver o resultado). As garças estão se virando bem com os igapós cheios. As galinhas d'água também. E os gerebas recolhem as sobras (acho que eles fizeram uma divisão com os outros urubus: estes ficam com as cidades - matadouros sobretudo - e os gerebas cuidam das matas, pastos e igapós).
Uma igrejinha no caminho merece uma foto.
Uma cabeça de passarinho no asfalto também (acho que foi degolada por um carro). É uma pena, mas tem muito disso na estrada. Os sapos estourados, então, nem se fala.
Aliás, em Bragança, pelo fato de o sapo atropelado colocar as vísceras para fora sempre pela enorme boca, quando alguém é sovina diz-se que o dito cujo é mais arrochado que aquilo de sapo.
Na primeira ponte antes de Peixe-Boi identifico à direita o aterro por onde passava o trem e uns quatro tocos da velha ponte de madeira, baixinha, quase rente à linha d'água. Na ponte atual, da rodovia, tem uma verdadeira colônia de urupés vermelhos cor de coral. Uma outra boniteza.
No balneário que faz as delícias dos moradores e visitantes, duas pichações do bem: FAÇA SEXO SEGURO e PRESERVE NOSSO PATRIMÔNIO NATURAL. O pimeiro apelo pode ter chegado a tempo para muita gente. O segundo chegou tarde para o mamífero que emprestou seu nome à cidade. Dele só restou o topônimo. E pensar que coisa de cinqüenta anos atrás ainda tinha peixe-boi em Peixe-Boi. Em Bragança ainda cheguei a comer peixe-boi trazido pelos meus parentes (sou do tempo em que tartaruga marinha era vendida vez por outra no cais de Bragança). E minha mãe usou couro de peixe-boi para fazer emplastro e colocar sobre uma hérnia umbilical que tive quando criança. Santo remédio. Fiquei curado para o resto da vida.
O que aconteceu com o peixe-boi de Peixe-boi vale para todos os nossos recursos naturais em toda a Amazônia. Aqui é um lugar para se aprender o que fazer e o que não fazer. Volto ao tema outro dia.
No restaurante indaguei pela Estação. Descaracterizada, só perguntando ou conhecendo se descobre onde ela está. É pena. Mas pelo menos está de pé. Soube que uma ONG recupera e difunde a memória da Estrada. Vou voltar outro dia para procurar o animador dessa ONG, que mora em Nova Timboteua, pelo que entendi.
Sigo viagem. O asfalto esquenta. O desgaste é grande. Talvez por isso não tenha percebido grandes belezas até Nova Timboteua. Mas notei uma cruz azul com as iniciais R. A. A., de um jovem que ali encontrou seu fim poucos anos atrás. E a Base de Operações Pedro Teixeira, do Exército.
Cheguei a Nova Timboteu em plena canícula das duas da tarde (agora sei o que é canícula das duas da tarde, na vera). Fátima, a dona do restaurante a quem na ida prometera voltar caminhando de Bragança saudou-me com genuína alegria, abraçou-me, felicitou-me e me serviu guaraná (Tuchaua, em garrafa de cerveja, que só encontro por aqui). Passo rapidamente pela casa da Dona Nazaré, volto ao comércio do meu primo Aldemiro Alencar, seu genro, e acerto com Mira o caminho da casa dele, como combinara por telefone (muito obrigado, Aldinho). Na imensa casa nos arredores da cidade, espera-nos a filha de Mira, Vivi, que segura a cadela e faz as honras da casa (obrigado, Mira e Vivi).
Cuido das bolhas, contabilizo quilômetros com Luciano - no dia seguinte vou encarar coisa como 32 quilômetros até Igarapé-Açu - converso com Mira, vejo TV, leio jornal de ontem e durmo direto até o amanhecer.
Não deu para ir ao cyber.
Por isso só agora, em Igarapé-Açu, atualizo o blog.
Fico devendo o post com o trecho de hoje.
E sigo amanhã cedinho para São Francisco.
Nos reencontramos amanhã, espero, caso encontre um cyber.
Comentários
Quanto à Lagoa Azul, é verdade, seja nas chuvas, seja nas poucas chuvas, não tem jeito, a água é bela.
Bons passos.
A ponte de ferro de S. Francisco está firme e forte como a Torre Eiffel e a de Livramento. As obras da rodovia - novinha, pronta para ser inaugurada - comeram o aterro da banda que dá para a cidade. Da outra banda ainda dá para ver o que sobrou do aterro da ferrovia e a ponta da estrutura metálica. Acho que se o Lutfala tivesse inspecionado a obra teria dado um jeito de deixar o aterro inteiro, a única referência material da Estrada de Ferro na zona urbana. Fico devendo a foto, por enquanto. Mas está feita.
A torre que ancorava o zeppelin que patrulhava esta parte do Atlântico durante a Segunda Guerra sumiu. Até a base da Aeronáutica está abandonada e praticamente depredada.