A Rota da Estrada de Ferro: de Santa Izabel a Benevides
Recomecei a caminhada hoje, no nono dia, um pouco tarde, da Paxiúba, do exato lugar onde uma ponte de madeira ruiu dois anos atrás e não foi refeita pela Prefeitura de Santa Izabel. Cheguei ontem perto daqui, vindo de Americano. Tentei um desvio, mas não deu. Era coisa para jipeiro. Por isso fiz o reconhecimento ontem à tarde e recomecei a caminhada desse ponto.
Aqui o caminho é tipicamente uma trilha do que restou da ferrovia, com aterros e cortes. Converso com os moradores, que reclamam do isolamento e das más condições da trilha (não se pode dizer que é estrada, pois está muito abandonada). Eles dizem que suas bicicletas são avariadas a cada viagem até Santa Izabel.
Para compensar o atraso aperto o passo e aproveito para usufruir os últimos quilômetros de terra, pois de Santa Izabel em diante vai ser só asfalto.
Dá para ouvir ao longe o rugido dos carros que passam na BR-316.
Encontro um aviso ameaçador em uma porteira: ATENÇÃO. NÃO ENTRE. ARMADILHAS. Se for verdade - e se não for também - é um ato de barbárie.
Pedras pretas empilhadas aguardam transporte (de trator, presumo). Calculo uns quatro a seis metros cúbicos. Extraídas com picareta e enxadas, pelo que vi ontem quando fiz o reconhecimento da rota.
Apesar das chuvas que destróem o leito da antiga estrada, os igarapés estão pequenos. Estão definhando. Vão morrer, se nada for feito. E a julgar pelo desmatamento recorde do ano passado na Amazônia, nada vai ser feito.
Vou encontrando passarinheiros em bicicletas com seus curiós - coleiras e pintadas também - porque hoje é sábado.
Com uma hora de caminhada estou nos arredores de Santa Izabel, onde placas toscas espetadas em postes de madeira registram que estou caminhando pela Antiga Estrada de Ferro. Esses postes marcam futuras esquinas do que parece ser um loteamento, sugestivo de que um dos vetores de expansão urbana passa por aqui. Se vingar, vai topar com fazendas e piçarreiras.
Reencontro um cearense que me deu informações ontem.
Sigo até a velha estação, relativamente bem conservada (o telhado é original). A plataforma foi incorporada à rua, praticamente. Tornou-se menos que uma calçada. Mais adiante, de frente para a Igreja, o belo prédio do Grupo Escolar, bem conservado, igual aos de Castanhal e Igarapé-Açu,que o historiador José Guimarães me informou ter sido um padrão de Augusto Montenegro. Na frente do grupo um marco assinala a inauguração da Estrada de Rodagem da Vigia, quando era Interventor Magalhães Barata e Prefeito de Belém o Padre Leandro Ferreira (de tradicional família bragantina).
O centro da cidade está movimentado, porque hoje é sábado.
Prossigo pela suave curva da avenida principal, por onde passava o trem. Todas as cidades por onde ele passava guardam essa marca no traçado urbano: uma avenida larga e suavemente curva.
Logo estou na frente do Colégio Antônio Lemos, lindíssimo, em estilo eclético, com um belo gradil de ferro trabalhado e detalhes construtivos também em ferro. Está em funcionamento e tem uma construção ao lado. Mas precisa de cuidados.
Chego a BR-316 e dou adeus ao sossego. Caminho pela esquerda, no acostamento. Sempre que posso, vou para a terra. É dureza caminhar no asfalto. Não tem sol, mas o mormaço e a temperatura alta desgastam muito. Esqueci o cajado e perdi rendimento. Sei que pode parecer estranho, mas sem cajado não se caminha bem. Perde-se ritmo. E como o cajado ajuda a apoiar o corpo e impulsioná-lo para diante, poupa as pernas. Como se troca de mão constantemente, previne o inchaço delas. E serve também para fazer alongamento enquanto se caminha. O cajado é, na verdade, uma máquina simples e de muita valia para o caminhante. O que estou usando é de tapiririca - recebi de Zé Maria, na Parada 29, no primeiro dia - que dá péssimo carvão - rende pouco, estala muito e solta fagulhas - e ótimo cajado. Tão bom quando o de avelano que mo deu Pablito de las Varas, em Ázqueta, no Caminho de Santiago.
Na curva da Moema o que parece ser um cordão retorcido me chama a atenção. Volto para conferir. Era um filhote de jibóia, uma jiboinha de uns quarenta centímetros, que perdeu a vida ao tentar uma travessia impossível. Está seca como se fosse uma miniatura de jibóia mumificada.
A estaçãozinha da Parada Moema - que foi uma das mais chiques - está em ruínas. E a residência de veraneio de Antônio Lemos tem ruínas, uma capela e dois chalés que parecem bem conservados. Nos jardins, a reprodução de pedras que lembram as que existem no parque zoobotânico do Museu Goeldi.
Com as mãos inchando e o cansaço chegando, combino com Luciano - que voltou a adiantar-se a cada três quilômetros - uma parada para descanso na entrada de Benevides, onde alongo, tomo um cantil inteiro de água - a do meu camel bag já terminara - e descanso na frente de uma fábrica da Weber-Saint-Gobain (os franceses estão de volta a Benevides...).
Descanso quinze minutos e volto a caminhar, para reencontrar a rota original da estrada de ferro.
Chácaras e sítios à venda indicam que as águas não estão para peixe por aqui.
E não estão mesmo.
E pensar que alguma delas pode ter sido um dia propriedade de algum egresso da Comuna de Paris (que aqui, conforme relato do Cônsul da França em Callao-Peru em livro, chegaram a ter fazendas onde havia escravos). Aliás, a libertação precoce dos escravos é feito histórico que enche de orgulho os benevidenses
Mais adiante constato que um igarapé que até poucos anos antes era bem frequentado, em pleno inverno - ontem choveu bastante por aqui - tornou-se uma vala de águas barrentas.
Chego finalmente na curva que assinala o reencontro com o leito da antiga estrada de ferro. Bem na junção tem uma capelinha. Vou convidar o Lafayette para recuperar a trilha de jipe até onde der.
Sigo em direção à velha estação de Benevides, passando em frente do lugar onde tempos atrás tive um sítio, com casa de taipa coberta de folha de buçu. O igarapé que passava nos fundos depois de atravessar o leito da estrada de ferro virou outra vala.A medida que vou entrando na Região Metropolitana, os igarapés vão desaparecendo, sumindo, virando valas. Esse vai ser o destino de todos os igarapés, se os comitês hidrográficos não forem criados, instalados e efetivados. Parece que como temos muitos rios imensos, nos damos ao luxo de matar nossos igarapés. Isso em um Estado onde até os olhos d'água estão protegidos pela Constituição do Estado (graças a sensibilidade do Deputado Estadual e constituinte Zeno Veloso, que encampou uma sugestão que eu havia recebido do geólogo Galeão, do IDESP).
Paro na frente do Terminal Rodoviário, onde tem um mural com figuras oníricas. Uma delas é uma locomotiva a vapor puxando vagões que se transformam na cauda de um escorpião. No ferrão tem a palavra VOTO. Puro realismo fantástico.
A velha estação foi adaptada para funcionar como Banco do Cidadão, mas dá para reconhecer. A plataforma foi fechada com paredes e coberta por uma laje de concreto.
Amanhã recomeço a caminhada daqui da velha estação.
Já com saudades de tudo o que deixei para trás depois de quase duzentos quilômetros de caminhada, começo a ter certeza que vou voltar a fazer esta rota outra vez.
Amanhã chego a Ananindeua, onde eu moro. Se tiver pique, chegarei à Praça do Operário, onde ficava a Estação (atualmente é o Terminal Rodoviário).
Aqui o caminho é tipicamente uma trilha do que restou da ferrovia, com aterros e cortes. Converso com os moradores, que reclamam do isolamento e das más condições da trilha (não se pode dizer que é estrada, pois está muito abandonada). Eles dizem que suas bicicletas são avariadas a cada viagem até Santa Izabel.
Para compensar o atraso aperto o passo e aproveito para usufruir os últimos quilômetros de terra, pois de Santa Izabel em diante vai ser só asfalto.
Dá para ouvir ao longe o rugido dos carros que passam na BR-316.
Encontro um aviso ameaçador em uma porteira: ATENÇÃO. NÃO ENTRE. ARMADILHAS. Se for verdade - e se não for também - é um ato de barbárie.
Pedras pretas empilhadas aguardam transporte (de trator, presumo). Calculo uns quatro a seis metros cúbicos. Extraídas com picareta e enxadas, pelo que vi ontem quando fiz o reconhecimento da rota.
Apesar das chuvas que destróem o leito da antiga estrada, os igarapés estão pequenos. Estão definhando. Vão morrer, se nada for feito. E a julgar pelo desmatamento recorde do ano passado na Amazônia, nada vai ser feito.
Vou encontrando passarinheiros em bicicletas com seus curiós - coleiras e pintadas também - porque hoje é sábado.
Com uma hora de caminhada estou nos arredores de Santa Izabel, onde placas toscas espetadas em postes de madeira registram que estou caminhando pela Antiga Estrada de Ferro. Esses postes marcam futuras esquinas do que parece ser um loteamento, sugestivo de que um dos vetores de expansão urbana passa por aqui. Se vingar, vai topar com fazendas e piçarreiras.
Reencontro um cearense que me deu informações ontem.
Sigo até a velha estação, relativamente bem conservada (o telhado é original). A plataforma foi incorporada à rua, praticamente. Tornou-se menos que uma calçada. Mais adiante, de frente para a Igreja, o belo prédio do Grupo Escolar, bem conservado, igual aos de Castanhal e Igarapé-Açu,que o historiador José Guimarães me informou ter sido um padrão de Augusto Montenegro. Na frente do grupo um marco assinala a inauguração da Estrada de Rodagem da Vigia, quando era Interventor Magalhães Barata e Prefeito de Belém o Padre Leandro Ferreira (de tradicional família bragantina).
O centro da cidade está movimentado, porque hoje é sábado.
Prossigo pela suave curva da avenida principal, por onde passava o trem. Todas as cidades por onde ele passava guardam essa marca no traçado urbano: uma avenida larga e suavemente curva.
Logo estou na frente do Colégio Antônio Lemos, lindíssimo, em estilo eclético, com um belo gradil de ferro trabalhado e detalhes construtivos também em ferro. Está em funcionamento e tem uma construção ao lado. Mas precisa de cuidados.
Chego a BR-316 e dou adeus ao sossego. Caminho pela esquerda, no acostamento. Sempre que posso, vou para a terra. É dureza caminhar no asfalto. Não tem sol, mas o mormaço e a temperatura alta desgastam muito. Esqueci o cajado e perdi rendimento. Sei que pode parecer estranho, mas sem cajado não se caminha bem. Perde-se ritmo. E como o cajado ajuda a apoiar o corpo e impulsioná-lo para diante, poupa as pernas. Como se troca de mão constantemente, previne o inchaço delas. E serve também para fazer alongamento enquanto se caminha. O cajado é, na verdade, uma máquina simples e de muita valia para o caminhante. O que estou usando é de tapiririca - recebi de Zé Maria, na Parada 29, no primeiro dia - que dá péssimo carvão - rende pouco, estala muito e solta fagulhas - e ótimo cajado. Tão bom quando o de avelano que mo deu Pablito de las Varas, em Ázqueta, no Caminho de Santiago.
Na curva da Moema o que parece ser um cordão retorcido me chama a atenção. Volto para conferir. Era um filhote de jibóia, uma jiboinha de uns quarenta centímetros, que perdeu a vida ao tentar uma travessia impossível. Está seca como se fosse uma miniatura de jibóia mumificada.
A estaçãozinha da Parada Moema - que foi uma das mais chiques - está em ruínas. E a residência de veraneio de Antônio Lemos tem ruínas, uma capela e dois chalés que parecem bem conservados. Nos jardins, a reprodução de pedras que lembram as que existem no parque zoobotânico do Museu Goeldi.
Com as mãos inchando e o cansaço chegando, combino com Luciano - que voltou a adiantar-se a cada três quilômetros - uma parada para descanso na entrada de Benevides, onde alongo, tomo um cantil inteiro de água - a do meu camel bag já terminara - e descanso na frente de uma fábrica da Weber-Saint-Gobain (os franceses estão de volta a Benevides...).
Descanso quinze minutos e volto a caminhar, para reencontrar a rota original da estrada de ferro.
Chácaras e sítios à venda indicam que as águas não estão para peixe por aqui.
E não estão mesmo.
E pensar que alguma delas pode ter sido um dia propriedade de algum egresso da Comuna de Paris (que aqui, conforme relato do Cônsul da França em Callao-Peru em livro, chegaram a ter fazendas onde havia escravos). Aliás, a libertação precoce dos escravos é feito histórico que enche de orgulho os benevidenses
Mais adiante constato que um igarapé que até poucos anos antes era bem frequentado, em pleno inverno - ontem choveu bastante por aqui - tornou-se uma vala de águas barrentas.
Chego finalmente na curva que assinala o reencontro com o leito da antiga estrada de ferro. Bem na junção tem uma capelinha. Vou convidar o Lafayette para recuperar a trilha de jipe até onde der.
Sigo em direção à velha estação de Benevides, passando em frente do lugar onde tempos atrás tive um sítio, com casa de taipa coberta de folha de buçu. O igarapé que passava nos fundos depois de atravessar o leito da estrada de ferro virou outra vala.A medida que vou entrando na Região Metropolitana, os igarapés vão desaparecendo, sumindo, virando valas. Esse vai ser o destino de todos os igarapés, se os comitês hidrográficos não forem criados, instalados e efetivados. Parece que como temos muitos rios imensos, nos damos ao luxo de matar nossos igarapés. Isso em um Estado onde até os olhos d'água estão protegidos pela Constituição do Estado (graças a sensibilidade do Deputado Estadual e constituinte Zeno Veloso, que encampou uma sugestão que eu havia recebido do geólogo Galeão, do IDESP).
Paro na frente do Terminal Rodoviário, onde tem um mural com figuras oníricas. Uma delas é uma locomotiva a vapor puxando vagões que se transformam na cauda de um escorpião. No ferrão tem a palavra VOTO. Puro realismo fantástico.
A velha estação foi adaptada para funcionar como Banco do Cidadão, mas dá para reconhecer. A plataforma foi fechada com paredes e coberta por uma laje de concreto.
Amanhã recomeço a caminhada daqui da velha estação.
Já com saudades de tudo o que deixei para trás depois de quase duzentos quilômetros de caminhada, começo a ter certeza que vou voltar a fazer esta rota outra vez.
Amanhã chego a Ananindeua, onde eu moro. Se tiver pique, chegarei à Praça do Operário, onde ficava a Estação (atualmente é o Terminal Rodoviário).
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