A Rota da Estrada de Ferro: de Anhanga a Castanhal
Na sétima etapa saio um pouco mais tarde para Castanhal.
Não há erro no título.
É que instantes atrás, depois de uma longa conversa com o historiador e memorialista José Guimarães, relembramos que Anhanga era o primitivo nome do Município de São Francisco do Pará.
Sinceramente, por mim teria preferido manter o topônimo original, respeitando a história e a tradição do lugar. E para nos lembrar que esse ente protetor da natureza desvia os ataques que a ela se fizer para que eles atinjam os entes queridos dos agressores. Teria valido como advertência permanente. Reconheço o valor de São Francisco como protetor dos bichos, mas teria sido preferível manter a natureza sob dupla proteção, fazendo dele o santo padroeiro do lugar. Mas reconheço que os dois protetores fracassaram e pouco, quase nada, sobrou da página não escrita do Gênesis que existia por estas bandas.
Na saída de Anhanga um belo buritizal e um igapó partido ao meio pela rodovia são alguns desses restos.
A rodovia, tinindo de nova, vai ser inaugurada domingo que vem pela Governadora. Sigo por ela topando com equipes azafamadas que roçam e pintam de branco as bordas de proteção.
Logo deixo para trás uma pracinha e uma Igrejinha bem cuidadas.
Aperto o passo enquanto a manhã está fresca. Caminhar no asfalto não é algo que se deva fazer sob altas temperaturas.
A rodovia sufocou o leito da antiga ferrovia, que só aqui e acolá reaparece, geralmente um corte tomado pela capoeira. Um bom mateiro e uma boa equipe, com informações dos moradores mais antigos, conseguiria reabrir como trilha para trekking
e deixar a ferrovia como está no trecho Bragança-Tracuateua. E de quebra daria uma ótima ciclovia para os trabalhadores que se deslocam entre Anhanga e Castanhal (suspeito que se Castanhal continuar crescendo logo logo Anhanga vai ser cidade-dormitório).
Mais uma pernada e chego no Rio Marapanim, que divide os dois Municípios. O rio está cheio. O balneário é bonito, com a cara amazônica de nossos inconfundíveis igarapés. Ao lado da ponte rodoviária estão as ruínas da ponte ferroviária. A diferença de nível entre as duas é de quase três metros. Esses quase três metros são a medida do encolhimento do rio. Que no verão fica com uns poucos palmos de fundura.
Olhando para esse e outros rios da região fico impressionado como o conceito de comitê hidrográfico simplesmente não vingou aqui. A sociedade civil fica esperando pela sociedade política e esta por aquela. Assim, ambas ficam imobilizadas. As prefeituras municipais parecem submersas em seus problemas, endógenos ou exógenos. Alguns gestores não se contentam com os problemas que têm e criam mais problemas ainda. Tropeçam nas próprias pernas. É impressionante como nossos rios estão morrendo e não surgem comitês para cuidar deles. Para alguns rios, já é tarde para criar comitês hidrográficos, pois deles só restaram vestígios, sejam eles um buritizal isolado ou uma depressão serpenteante no meio de um imenso pasto. Para salvar o Rio Marapanim vai ser preciso unir esforços de Anhanga, Castanhal e Marapanim, no mínimo. Esse raciocínio vale para todos, do Caeté ao Uriboca, do Gurupi ao Guamá, do Tocantins ao Tapajós.
Imerso nessas pensamentos ingresso nos domínios de Castanhal. Por mais que me esforçasse, não encontrei um só pé de castanheira. Sei que vou passar perto de alguns, no Apeú, depois da cidade. Neste trecho parece que tudo virou pasto. Da mata - bosque primário, como gostam de dizer os engenheiros florestais - sobrou um ou outro buritizal. Um deles resistiu bravamente à uma queimada recente. Mas não carregou este ano. Tem só folhas. Desejo que se recupere e que na próxima caminhada o encontre com buritis, muitos buritis.
Aqui e acolá reconheço um ou outro corte da ferrovia, tomado pela capoeira ou pelo capim das fazendas. Com a rodovia em muitos lugares foram feitos acesso para as fazendas, com aterros e manilhas de concreto para drenar a água. Nesses pontos fica mais fácil identificar os cortes.
Mais um passarinho - uma pipira - vítima de atropelamento. Não vai dar nos jornais.
Uma casa de farinha à moda antiga. Pero no mucho, percebo em seguida. Antigamente só se fazia farinha d'água. Farinha de mandioca ralada - à mão - era chamada de farinha seca. Era para tomar com café preto. Dava mais trabalho e não era tão gostosa quanto a d'água. No processo antigo a mandioca era colocada com casca e tudo nos poções, um remanso de um igarapé cercado para afastar os porcos e cavalos. Cinco dias mais ou menos e ela já estava mole e pronta para ser descascada, amassada, espremida no tipiti, peneirada, escaldada e torrada no forno (quem podia o tinha de cobre, quem não podia o tinha de ferro ou barro mesmo). Quando estava no poção a mandioca fornecia alimento para as piabas (lambaris, Bia) e caranguejos. Nada que prejudicasse o rendimento. Antes pelo contrário. Dependendo do tamanho o caranguejo poderia virar comida das crianças. Mais por brincadeira do que por precisão, pois fome não se passava não. Quando a massa da mandioca estava escaldando dava para fazer capitães com a mão e comer na hora, quentinha, desde que acertasse bem o ponto. Se errasse, era dor de barriga na certa. No mínimo. Em Bragança se usava rodos de madeira leve (maravuvuia) para torrar farinha. Mais perto do oceano ou rios grandes, se usava remos. Mandioca muito madura produz farinha de muita palha. Um bom fazedor de farinha lançava porções dela para o alto, para ventejar. O vento retirava a palha. Caíam de volta no forno só os grãos, de maior densidade. Jaime, casado com minha prima Adalgisa, fazia isso com maestria. Manoel Borges, do Cujubim, foi um lendário fabricante de farinha d'água, daquela bem amarelinha (de mandioca manicé). Pois bem, agora não tem mais poção. A mandioca é colocada no igarapé dentro de sacos de polipropileno. E as piabas e caranguejos dançaram. E também a farinha d'água que se fabrica hoje é pouca. Os produtores preferem usar caititu para ralar a mandioca e prensa para espremer. A mandioca vai n'água apenas para amolecer um pouco e facilitar a ralação. Mas em Bragança ainda se encontra farinha d'água da boa. Na feira da Cidade Nova, em Belém, tem um feirante que a fornece. A que é vendida nas demais feiras de Belém vem de Santa Maria do Pará, mas é vendida como se fosse de Bragança.
Por tudo isso penso que a farinha d´água e tantos outros produtos nossos - do açaí ao bacuri, do cupuaçu à baunilha - bem que poderiam receber Denominação de Origem Controlada (DOC). Agregaria valor sem precisar de outra coisa que não uma idéia. Se vale para o vinho, vale para nossos produtos. Na Europa cada vez mais produtos recebem essa Denominação, da cebola do Loire à fava das Astúrias (13 euros o quilo), da pera de Anjou ao botillo de El Bierzo. Acho que a farinha d´água de Bragança bem que merecia uma Denominação. Farinha d'água DOC. O açaí das Ilhas também. A ova de tainha de Ajuruteua idem.
Enquanto penso nessas coisas vou contemplando buritizais e pastos. Logo chego à Vila Calúcia, que homenageia uma liderança do lugar. Não lembro desse nome no tempo da estrada e sei que não havia parada aqui. Mas um morador me confirma que o trem passava mais ou menos onde hoje é a vila e depois corria paralelo à atual rodovia, distante coisa de trezentos metros mais ou menos. Me aponta um bambuzal que assinala o lugar onde passava o trem. E me diz que caminhando se topa até hoje com uma vala grande. Ele se refere ao corte da ferrovia. Na saída da vila um pórtico reafirma a soberania de Castanhal sobre o lugar. Poucos quilômetros depois uma placa indica que a Travessa José de Alencar fica seis quilômetros dali. Depois soube que vai sair na estrada para Curuçá e que nela foram assentadas as famílias expulsas da invasão do Padre (assim ficou conhecida a área de propriedade de uma irmandade religiosa leiga cuja reintegração de posse levou a Diocese a abrigar na catedral em construção, por alguns dias, os despejados).
O vaivém de carros, bicicletas e motocicletas indica a proximidade de Castanhal. Já dá para divisar a torre de concreto da Telemar - essa coisa horrorosa que enfeia qualquer cidade, pois as operadoras não se preocupam minimamente com a estética urbana, ao contrário do que os vienenses fizeram com sua usina de incineração de lixo - e os edifícios mais altos.
Na entrada da cidade sou alcançado pela equipe da Rede Paraense de Televisão, que registra a chegada e faz uma rápida entrevista. Fico devendo mais essa ao Rogério Bulhões.
Caminho mais um pouco e encontro um operário retocando a imensa placa que anuncia o asfaltamento da rodovia, de Castanhal a Igarapé-Açu. Uma estrutura de concreto espera uma lápide ou placa. Pelas contas da placona são 50 km de asfalto. Pelo mapa do Guia Quatro Rodas e pelas contas de Luciano, bem menos (42 ou 43 quilômetros).
Termino esta etapa no exato lugar onde ficava a Estação, na esquina da Barão com a Irmã Adelaide. Um memorial marca o lugar.
Hoje vou ficar na casa de Andréa, irmã de Araceli.
Depois do almoço - um carneiro grelhado que é uma especialidade da Churrascaria do Carneiro, na Barão com Altamira - faço compras com Araceli, visito a casa de seu irmão Hélio - pai de Helinho, agora no futebol canadense, que treina no Castanhal enquanto paparica sua primeira filha e deixa passar o inverno canadense - e vou ao encontro de José Guimarães, o historiador e memorialista da cidade.
Conversa longa e proveitosa.
Concordamos que, com exceção de Belém e Bragança, todas as demais cidades ao longo da Estrada a ela devem quase tudo o que são. A Estrada é o mito fundante de todas elas. E que embora começada a construção sob o Império - em 1883 - a Estrada foi um projeto republicano, um projeto de afirmação da modernidade republicana. Por isso era mais fácil perceber um objetivo claro - fornecer alimentos para as metrópoles que surgiam com o boom da borracha - um projeto claro a orientar as ações. Em cem anos países inteiros completaram seu ciclo de superação e expansão (o Japão saiu do feudalismo para a mais avançada industrialização, para ficar apenas com um exemplo). No Nordeste Paraense não fomos capazes de fazer o mesmo, no mesmo período. Em certos aspectos regredimos e vivemos nossa própria Idade Média. Não foram poucas as casas feitas de palha de najá que encontrei. A pobreza não é vasqueira por estas bandas. E a violência não poupa ninguém. O próprio historiador evita andar de motocicleta para certos lugares, para não correr risco de roubarem-na. Prefere ir de ônibus.
Depois de explicar-lhe a iniciativa do Museu de Arte Sacra da Diocese de Bragança, ele nos franqueia parte de seus arquivos pessoais e nos mostra fotografias da velha estação e de locomotivas. Vamos comentando os detalhes.
A estação ficava no meio do que hoje é a avenida Barão. As composições passavam por dentro dela, que tinha duas plataformas. Quando foi extinta a ferrovia o Prefeito Pedro Mota lutou para que a locomotiva Castanhal ficasse na cidade. Conseguiu. Hoje ela está razoavelmente bem preservada na Praça do Estrela, depois de perambular por outros lugares da cidade. O historiador critica a mudança de número. Era 24. Mudaram para 28, data da fundação da cidade. A desculpa é furada. E pode ter sido puro preconceito, que não afirmo, mas suspeito.
Selecionamos onze fotos, inclusive das locomotivas Augusto Montenegro, Castanhal e Anhanga (as locomotivas recebiam nomes dos lugares onde o trem passava), da estação e de cassacos.
Uma delas já dos anos sessenta, mostra um Aero-Willys.
Recebo de José Guimarães essa contribuição para o Centenário da Estrada.
Agora vamos digitalizar, reproduzir e remeter para o Museu de Arte Sacra em Bragança.
Obrigado, Guimarães.
Amanhã quero chegar a Santa Izabel, se possível recuperando o percurso de Americano em diante.
Não há erro no título.
É que instantes atrás, depois de uma longa conversa com o historiador e memorialista José Guimarães, relembramos que Anhanga era o primitivo nome do Município de São Francisco do Pará.
Sinceramente, por mim teria preferido manter o topônimo original, respeitando a história e a tradição do lugar. E para nos lembrar que esse ente protetor da natureza desvia os ataques que a ela se fizer para que eles atinjam os entes queridos dos agressores. Teria valido como advertência permanente. Reconheço o valor de São Francisco como protetor dos bichos, mas teria sido preferível manter a natureza sob dupla proteção, fazendo dele o santo padroeiro do lugar. Mas reconheço que os dois protetores fracassaram e pouco, quase nada, sobrou da página não escrita do Gênesis que existia por estas bandas.
Na saída de Anhanga um belo buritizal e um igapó partido ao meio pela rodovia são alguns desses restos.
A rodovia, tinindo de nova, vai ser inaugurada domingo que vem pela Governadora. Sigo por ela topando com equipes azafamadas que roçam e pintam de branco as bordas de proteção.
Logo deixo para trás uma pracinha e uma Igrejinha bem cuidadas.
Aperto o passo enquanto a manhã está fresca. Caminhar no asfalto não é algo que se deva fazer sob altas temperaturas.
A rodovia sufocou o leito da antiga ferrovia, que só aqui e acolá reaparece, geralmente um corte tomado pela capoeira. Um bom mateiro e uma boa equipe, com informações dos moradores mais antigos, conseguiria reabrir como trilha para trekking
e deixar a ferrovia como está no trecho Bragança-Tracuateua. E de quebra daria uma ótima ciclovia para os trabalhadores que se deslocam entre Anhanga e Castanhal (suspeito que se Castanhal continuar crescendo logo logo Anhanga vai ser cidade-dormitório).
Mais uma pernada e chego no Rio Marapanim, que divide os dois Municípios. O rio está cheio. O balneário é bonito, com a cara amazônica de nossos inconfundíveis igarapés. Ao lado da ponte rodoviária estão as ruínas da ponte ferroviária. A diferença de nível entre as duas é de quase três metros. Esses quase três metros são a medida do encolhimento do rio. Que no verão fica com uns poucos palmos de fundura.
Olhando para esse e outros rios da região fico impressionado como o conceito de comitê hidrográfico simplesmente não vingou aqui. A sociedade civil fica esperando pela sociedade política e esta por aquela. Assim, ambas ficam imobilizadas. As prefeituras municipais parecem submersas em seus problemas, endógenos ou exógenos. Alguns gestores não se contentam com os problemas que têm e criam mais problemas ainda. Tropeçam nas próprias pernas. É impressionante como nossos rios estão morrendo e não surgem comitês para cuidar deles. Para alguns rios, já é tarde para criar comitês hidrográficos, pois deles só restaram vestígios, sejam eles um buritizal isolado ou uma depressão serpenteante no meio de um imenso pasto. Para salvar o Rio Marapanim vai ser preciso unir esforços de Anhanga, Castanhal e Marapanim, no mínimo. Esse raciocínio vale para todos, do Caeté ao Uriboca, do Gurupi ao Guamá, do Tocantins ao Tapajós.
Imerso nessas pensamentos ingresso nos domínios de Castanhal. Por mais que me esforçasse, não encontrei um só pé de castanheira. Sei que vou passar perto de alguns, no Apeú, depois da cidade. Neste trecho parece que tudo virou pasto. Da mata - bosque primário, como gostam de dizer os engenheiros florestais - sobrou um ou outro buritizal. Um deles resistiu bravamente à uma queimada recente. Mas não carregou este ano. Tem só folhas. Desejo que se recupere e que na próxima caminhada o encontre com buritis, muitos buritis.
Aqui e acolá reconheço um ou outro corte da ferrovia, tomado pela capoeira ou pelo capim das fazendas. Com a rodovia em muitos lugares foram feitos acesso para as fazendas, com aterros e manilhas de concreto para drenar a água. Nesses pontos fica mais fácil identificar os cortes.
Mais um passarinho - uma pipira - vítima de atropelamento. Não vai dar nos jornais.
Uma casa de farinha à moda antiga. Pero no mucho, percebo em seguida. Antigamente só se fazia farinha d'água. Farinha de mandioca ralada - à mão - era chamada de farinha seca. Era para tomar com café preto. Dava mais trabalho e não era tão gostosa quanto a d'água. No processo antigo a mandioca era colocada com casca e tudo nos poções, um remanso de um igarapé cercado para afastar os porcos e cavalos. Cinco dias mais ou menos e ela já estava mole e pronta para ser descascada, amassada, espremida no tipiti, peneirada, escaldada e torrada no forno (quem podia o tinha de cobre, quem não podia o tinha de ferro ou barro mesmo). Quando estava no poção a mandioca fornecia alimento para as piabas (lambaris, Bia) e caranguejos. Nada que prejudicasse o rendimento. Antes pelo contrário. Dependendo do tamanho o caranguejo poderia virar comida das crianças. Mais por brincadeira do que por precisão, pois fome não se passava não. Quando a massa da mandioca estava escaldando dava para fazer capitães com a mão e comer na hora, quentinha, desde que acertasse bem o ponto. Se errasse, era dor de barriga na certa. No mínimo. Em Bragança se usava rodos de madeira leve (maravuvuia) para torrar farinha. Mais perto do oceano ou rios grandes, se usava remos. Mandioca muito madura produz farinha de muita palha. Um bom fazedor de farinha lançava porções dela para o alto, para ventejar. O vento retirava a palha. Caíam de volta no forno só os grãos, de maior densidade. Jaime, casado com minha prima Adalgisa, fazia isso com maestria. Manoel Borges, do Cujubim, foi um lendário fabricante de farinha d'água, daquela bem amarelinha (de mandioca manicé). Pois bem, agora não tem mais poção. A mandioca é colocada no igarapé dentro de sacos de polipropileno. E as piabas e caranguejos dançaram. E também a farinha d'água que se fabrica hoje é pouca. Os produtores preferem usar caititu para ralar a mandioca e prensa para espremer. A mandioca vai n'água apenas para amolecer um pouco e facilitar a ralação. Mas em Bragança ainda se encontra farinha d'água da boa. Na feira da Cidade Nova, em Belém, tem um feirante que a fornece. A que é vendida nas demais feiras de Belém vem de Santa Maria do Pará, mas é vendida como se fosse de Bragança.
Por tudo isso penso que a farinha d´água e tantos outros produtos nossos - do açaí ao bacuri, do cupuaçu à baunilha - bem que poderiam receber Denominação de Origem Controlada (DOC). Agregaria valor sem precisar de outra coisa que não uma idéia. Se vale para o vinho, vale para nossos produtos. Na Europa cada vez mais produtos recebem essa Denominação, da cebola do Loire à fava das Astúrias (13 euros o quilo), da pera de Anjou ao botillo de El Bierzo. Acho que a farinha d´água de Bragança bem que merecia uma Denominação. Farinha d'água DOC. O açaí das Ilhas também. A ova de tainha de Ajuruteua idem.
Enquanto penso nessas coisas vou contemplando buritizais e pastos. Logo chego à Vila Calúcia, que homenageia uma liderança do lugar. Não lembro desse nome no tempo da estrada e sei que não havia parada aqui. Mas um morador me confirma que o trem passava mais ou menos onde hoje é a vila e depois corria paralelo à atual rodovia, distante coisa de trezentos metros mais ou menos. Me aponta um bambuzal que assinala o lugar onde passava o trem. E me diz que caminhando se topa até hoje com uma vala grande. Ele se refere ao corte da ferrovia. Na saída da vila um pórtico reafirma a soberania de Castanhal sobre o lugar. Poucos quilômetros depois uma placa indica que a Travessa José de Alencar fica seis quilômetros dali. Depois soube que vai sair na estrada para Curuçá e que nela foram assentadas as famílias expulsas da invasão do Padre (assim ficou conhecida a área de propriedade de uma irmandade religiosa leiga cuja reintegração de posse levou a Diocese a abrigar na catedral em construção, por alguns dias, os despejados).
O vaivém de carros, bicicletas e motocicletas indica a proximidade de Castanhal. Já dá para divisar a torre de concreto da Telemar - essa coisa horrorosa que enfeia qualquer cidade, pois as operadoras não se preocupam minimamente com a estética urbana, ao contrário do que os vienenses fizeram com sua usina de incineração de lixo - e os edifícios mais altos.
Na entrada da cidade sou alcançado pela equipe da Rede Paraense de Televisão, que registra a chegada e faz uma rápida entrevista. Fico devendo mais essa ao Rogério Bulhões.
Caminho mais um pouco e encontro um operário retocando a imensa placa que anuncia o asfaltamento da rodovia, de Castanhal a Igarapé-Açu. Uma estrutura de concreto espera uma lápide ou placa. Pelas contas da placona são 50 km de asfalto. Pelo mapa do Guia Quatro Rodas e pelas contas de Luciano, bem menos (42 ou 43 quilômetros).
Termino esta etapa no exato lugar onde ficava a Estação, na esquina da Barão com a Irmã Adelaide. Um memorial marca o lugar.
Hoje vou ficar na casa de Andréa, irmã de Araceli.
Depois do almoço - um carneiro grelhado que é uma especialidade da Churrascaria do Carneiro, na Barão com Altamira - faço compras com Araceli, visito a casa de seu irmão Hélio - pai de Helinho, agora no futebol canadense, que treina no Castanhal enquanto paparica sua primeira filha e deixa passar o inverno canadense - e vou ao encontro de José Guimarães, o historiador e memorialista da cidade.
Conversa longa e proveitosa.
Concordamos que, com exceção de Belém e Bragança, todas as demais cidades ao longo da Estrada a ela devem quase tudo o que são. A Estrada é o mito fundante de todas elas. E que embora começada a construção sob o Império - em 1883 - a Estrada foi um projeto republicano, um projeto de afirmação da modernidade republicana. Por isso era mais fácil perceber um objetivo claro - fornecer alimentos para as metrópoles que surgiam com o boom da borracha - um projeto claro a orientar as ações. Em cem anos países inteiros completaram seu ciclo de superação e expansão (o Japão saiu do feudalismo para a mais avançada industrialização, para ficar apenas com um exemplo). No Nordeste Paraense não fomos capazes de fazer o mesmo, no mesmo período. Em certos aspectos regredimos e vivemos nossa própria Idade Média. Não foram poucas as casas feitas de palha de najá que encontrei. A pobreza não é vasqueira por estas bandas. E a violência não poupa ninguém. O próprio historiador evita andar de motocicleta para certos lugares, para não correr risco de roubarem-na. Prefere ir de ônibus.
Depois de explicar-lhe a iniciativa do Museu de Arte Sacra da Diocese de Bragança, ele nos franqueia parte de seus arquivos pessoais e nos mostra fotografias da velha estação e de locomotivas. Vamos comentando os detalhes.
A estação ficava no meio do que hoje é a avenida Barão. As composições passavam por dentro dela, que tinha duas plataformas. Quando foi extinta a ferrovia o Prefeito Pedro Mota lutou para que a locomotiva Castanhal ficasse na cidade. Conseguiu. Hoje ela está razoavelmente bem preservada na Praça do Estrela, depois de perambular por outros lugares da cidade. O historiador critica a mudança de número. Era 24. Mudaram para 28, data da fundação da cidade. A desculpa é furada. E pode ter sido puro preconceito, que não afirmo, mas suspeito.
Selecionamos onze fotos, inclusive das locomotivas Augusto Montenegro, Castanhal e Anhanga (as locomotivas recebiam nomes dos lugares onde o trem passava), da estação e de cassacos.
Uma delas já dos anos sessenta, mostra um Aero-Willys.
Recebo de José Guimarães essa contribuição para o Centenário da Estrada.
Agora vamos digitalizar, reproduzir e remeter para o Museu de Arte Sacra em Bragança.
Obrigado, Guimarães.
Amanhã quero chegar a Santa Izabel, se possível recuperando o percurso de Americano em diante.
Comentários
Estas escrevendo igual alguém que conheço!
Informação, seriedade e descontração.
Entre Americano e Santa Izabel a Estrada, neste inverno, virou trilha para jipeiro. Amanhã recomeço de lá, mais ou menos sete quilômetros antes da cidade.
Espero terminar a caminhada de Benevides para a frente.
Somente hoje tomei conhecimento de tua extraordinária aventura, percorrendo o antigo trajeto da ferrovia e dos comentários que está escrevendo no teu blog. De imediato, com curiosidade, acessei o tive o imenso prazer de ler textos que aliam a busca para reencontrar o passado, com o lirismo do observador que ama a natureza e ao mesmo tempo apresenta idéias ara resgatar o caminho, que não é de São Tiago, levava até São Francisco, que e do Pará.
Espero que o amigo transforme tais relatos em livro. O Pará merece.
Abraços do Ronaldo Barata
você caminha mais rápido do que o tempo me permite persegui-lo...rsrsrs... O tempo, essa coisa que a gente usa tão errado, às vezes.
Pelo seu relato, hoje eu proporia que Castanhal fosse transformada em parte da região metropolitana de Anhanga! Sem querer provocar a Araceli e os castanhalenses...rsrs...
Leio seus posts e me contenho na emoção, tentando fazer com que a racionalidade predomine e eu seja capaz de compreender - e aceitar - que há um tempo que não voltará jamais. Porque Bragança é quase o mundo, como diz nosso amigo Antonio Maria.
O que você relata são pedaços de vida, que compõem a memória individual e seu relato serve a mim e à estrada de ferro da minha infância, e a cada um com seus pedaços, sejam eles de asfalto, chão batido, piçarra, mar ou rios.
Mas o que é muito forte no seu relato é o grito amoroso pelo direito coletivo que não é respeitado: o direito ao resgate e à preservação da história.
Antes de me despedir , eu sei o que são piabas, mas me pavoneei muito com a sua lembrança!
Lambaris quase não há mais no rio Juquiá, onde meu pai pescava, no Vale da Ribeira. Aliás, reconheço aqui, só pra você, que paulista precisa rever sua nomenclatura: rios são os nossos, de cá. Lá deveriam ser todos rebaixados a igarapés. Sem ofensa a ambos.
Abraço apertado
O relato, melhor ainda.
Não há cansaço, há encantamento.
Estamos passa-a-passo acompanhando.
Puxa vida! Quanto tempo.
Fico honrado com sua leitura e emocionado com seu comentário.
Agradeço seu entusiasmo e prometo pensar no livro.
Caríssima Bia,
Sempre lembro de você, pela estrada comum que nos une - a de ferro e a da luta - e pela preocupação com nossos problemas.
Araceli, minha protetora e medianeira - ela deu força desde o primeiro minuto - é de Castanhal, nascida em Inhangapi (que já foi parte de Castanhal) e faz-lhe uma contraproposta: juntar tudo outra vez, pelo menos nos nossos corações e mentes.
Os rios do Sul são igarapés, amiga, mas os nossos estão desaparecendo. Hoje passei por uns dois em Benevides que em pleno inverno foram rebaixados para simples valas.
Caríssimo Val-André,
Muito obrigado por me honrar com sua leitura e pelo ânimo que seu comentário me dá. Grato, de coração.