A Rota da Estrada de Ferro: de Castanhal a Santa Izabel
Tomamos café com tapioca no Mercado de Castanhal em companhia de Araceli, depois da foto ao lado da locomotiva Castanhal, na Praça do Estrela. Atrasei um pouco, mas antes das oito já estava no lugar onde ficava a estação. Depois de vencer todo o estirão da Avenida Barão do Rio Branco, que faz uma curva suave exatamente como fazia a ferrovia, passo pela frente da Catedral em construção. O bispo Dom Verzeletti é um tocador de obras e para isso conta com o apoio dos católicos de Castanhal e da Itália. O Cenóbio da Transfiguração, construído de frente para o vale do Rio Apeú, em terras doadas por Pedrinho Mota, é um dos melhores centros de convenção privados do Estado.
Mais uma pernada e chego ao bairro Betânia, coladinho na Vila de Apeú. Sempre em curvas suaves, pois trem não faz curva fechada. A rodovia é nova, bem cuidada, tem canteiro central que vai estreitando até zerar, e uma ciclovia, à minha esquerda.
No quintal da Delegacia de Polícia de Apeú sobraram umas cinco castanheiras. Do outro lado da BR-316 vejo outra, visualmente poluída por um out door. A castanheira que tem capoeira por baixo está carregada de ouriços. É que o dossel formado pela capoeira permite a subida do besouro - imenso - que poliniza as flores da castanheira. Nas outras não há frutos porque o bicho, pesadão, não consegue voar direto até as flores. Quem passa apressado de automóvel não capta esses detalhes. Muito mais adiante vou encontrar outra castanheira, já em Americano. Bem que se podia incentivar o plantio de mudas de castanheira em Castanhal, para com elas repovoar o que restou de floresta. O Município precisa fazer jus ao topônimo.
O balneário de Apeú está transbordando de água barrenta. Choveu forte ontem. Não encontrei mais vestígios da velha ponte da ferrovia. Mas sei que era bem mais alta que a atual ponte rodoviária. O Rio Apeú é outro que está encolhendo. Ele pertence à bacia do Guamá e, por isso, corre da direita para a esquerda, ao contrário de todos os outros que encontrei até agora. Mais abaixo ele passa em Macapazinho, já mais encorpado. O Círio fluvial de lá é o mais antigo do Estado. Há um grupo de peregrinos que todos os anos desce de canoas pelo Apeú até Belém, para passar o Círio de Nazaré.
O comitê hidrográfico do Rio Apeú bem que podia começar com essa turma, que entende o - e do - rio. Antes que seja tarde.
A velha estação do Apeú está de pé e virou mercado. Mas as telhas não são as originais, francesas. Confronte à ela tem uma casa coberta com telhas que parece com as da antiga estação. Sigo mais um pouco e logo tenho que abandonar o leito da ferrovia, em frente ao restaurante Palco e um pouco antes da igrejinha onde termina a Romaria que é o equivalente do Círio (a berlinda é uma réplica da locomotiva Castanhal e no ano passado tinha sonoplastia e fumaça cenográfica). Da igrejinha em diante o leito da ferrovia foi tomado pela capoeira. Muitos anos atrás vi parte dele na fazenda do médico Paulo Mota.
Sigo pelas rodovias Transapeú e BR-316 daí por diante até aquela curva grande de Americano, que marca a interseção da rodovia com a ferrovia.
No caminho topo com o improvável: carrancas do S. Francisco, à venda em uma marcenaria na entrada da vicinal que leva à Vila de Pernambuco, perto da Polícia Rodoviária. Um pórtico - de gosto duvidoso - marca o fim do território castanhalense.
Logo depois da Fazenda Itaqui, outra vítima de atropelamento - que não vai sair nos jornais, Lafayette - uma bela jibóia de mais de um metro, que tentou uma travessia arriscada até para bípedes. Definitivamente, há uma incompatibilidade entre automóvel e vida selvagem. Na minha contabilidade a maior quantidade de vítimas é de sapos. Insetos não dá para contar porque ficam grudados no carros. Mas encontrei algumas jacintas (em Bragança não se falava em libélulas e acho que até hoje se falar vai parecer pavulagem ou... você sabe o que).
Na curva grande dá para identificar perfeitamente por onde passava o trem. Restaram menos de cem metros à direita da BR, uma bela trilha. À esquerda o trem passava ao lado do que hoje é uma movimentada fruteira - ou frutaria, como se diz agora - e seguia até a estação. Um morador doa uma relíquia para Luciano: um imenso parafuso enferrujado, de mais ou menos quinze centímetros, que era usado para prender os trilhos e as agulhas aos dormentes nas curvas (nas retas eram usados uns pregos do mesmo tamanho, de cabeça retangular). Os parafusos eram fixados e retirados com uma chave especial, também imensa, e os pregos com marretas e pés-de-cabra gigantes. Na ferrovia tudo era gigantesco. Quando uma locomotiva, um vagão ou uma plataforma descarrilava - em Bragança se diz descarrilhava - era usado um macaco mecânico de mais de metro e meio de altura, acionado no braço pelos cassacos. Macaco hidráulico não existia e era preciso muito forcejar para colocar o trem de volta nos trilhos.
Alongo e descanso um pouco conversando com Pedro, que viu o trem quando era criança e presenciou a remoção dos trilhos. Ele, como muitos da idade, morcegava o trem. Eu também fazia isso, para desespero da minha mãe e santa ira de meu pai. É que em Bragança as mutilações de morcegueiros em acidentes com o trem eram relativamente comuns, e muitos dos meus amigos - melhores e piores - eram mutilados. Por coincidência ou não, eram os moleques mais endiabrados. Um deles tinha uma perna só e jogava bola. E batia um bolão. Sério. Outro perdera metade do pé. O pai dele era uma santa criatura que fazia os caixões dos nossos defuntos (em Bragança tinha uma sociedade beneficiente que fazia enterros de seus associados, minha família toda era associada e papai fazia questão de pagar as irrisórias contribuições religiosamente). O que o pai tinha de bom o filho tinha de pernóstico e endiabrado, encrenqueiro mesmo. E também batia um bolão no campinho onde depois construíram o Ginásio Professor Paixão, da Campanha Nacional de Educandários da Comunidade - CNEC, hoje arruinado.
Pedro me dizia que o trem passava devagar na frente de sua casa aqui em Americano e seu pai aproveitava para jogar as cargas para dentro do vagão (e ele para morcegar).
A estação de Americano está intacta. Até a placa esmaltada com o nome do lugar está inteira. Agora é uma creche com o nome de Irmã Dulce. A plataforma foi fechada com uma parede e incorporada à creche.
Obtenho informações com moradores e com os policiais militares do destacamento. Os moradores me falaram que a estrada foi interrompida porque caiu uma ponte e o desvio leva à uma invasão e aí mora o perigo. De assaltos. Derrubam árvores na estrada para tomar bicicletas e motocicletas. Os policiais dizem que não é assim. Resolvo encarar até onde der. Agora Luciano é batedor e escolta.
Anos atrás passei por aqui e a estrada estava trafegável. Era explicável. Havia uma plantação de pinheiros que estavam sendo abatidos para servir de matéria prima para a fábrica de celulose da Jari, em Monte Dourado. As toras iam de caminhão até o porto de Tacajós, no Guamá, e dali seguiam em balsas até o Rio Jari, em Monte Dourado. Agora, sem interesse econômico em jogo, a estrada está abandonada. O leito passa rente à fazenda de Evandro Mutran. A ponte rompida me obriga fazer uso de um desvio. Completo vinte quilômetros de caminhada. Resolvo parar por hoje e fazer um levantamento do terreno, para prosseguir amanhã. Sigo até onde dá, logo depois da invasão da Travessa 21 de Abril. As chuvas recentes destruíram a vicinal, que é mantida pelo extratores de piçarra e pelo Mutran, que sempre atende os pedidos dos moradores. Dei o levantamento por terminado e regressei, avisando os moradores que o ramal estava interrompido. Um jovem morador nos disse que ia procurar o Mutran para que ele mandasse um trator arrumá-lo.
Sigo para Santa Izabel para fazer o levantamento da rota de amanhã, em sentido contrário. A caminhomete superaquece. Temos que parar de vez em quando para esfriar o motor. Enchemos o radiador com nossa ração de água mineral. Conseguimos chegar até a ponte, pelo outro lado. Agora sei que o lugar se chama Paxiúba e o leito da estrada de ferro é perfeitamente identificável.
Amanhã recomeço deste exato ponto, que fica distante uns sete quilômetros do local onde ficava a estação de Santa Izabel.
Espero chegar e, se der, passar de Benevides, a primeira colônia agrícola da estrada. Formada por colonos franceses, alguns deles egressos da Comuna de Paris.
Mais uma pernada e chego ao bairro Betânia, coladinho na Vila de Apeú. Sempre em curvas suaves, pois trem não faz curva fechada. A rodovia é nova, bem cuidada, tem canteiro central que vai estreitando até zerar, e uma ciclovia, à minha esquerda.
No quintal da Delegacia de Polícia de Apeú sobraram umas cinco castanheiras. Do outro lado da BR-316 vejo outra, visualmente poluída por um out door. A castanheira que tem capoeira por baixo está carregada de ouriços. É que o dossel formado pela capoeira permite a subida do besouro - imenso - que poliniza as flores da castanheira. Nas outras não há frutos porque o bicho, pesadão, não consegue voar direto até as flores. Quem passa apressado de automóvel não capta esses detalhes. Muito mais adiante vou encontrar outra castanheira, já em Americano. Bem que se podia incentivar o plantio de mudas de castanheira em Castanhal, para com elas repovoar o que restou de floresta. O Município precisa fazer jus ao topônimo.
O balneário de Apeú está transbordando de água barrenta. Choveu forte ontem. Não encontrei mais vestígios da velha ponte da ferrovia. Mas sei que era bem mais alta que a atual ponte rodoviária. O Rio Apeú é outro que está encolhendo. Ele pertence à bacia do Guamá e, por isso, corre da direita para a esquerda, ao contrário de todos os outros que encontrei até agora. Mais abaixo ele passa em Macapazinho, já mais encorpado. O Círio fluvial de lá é o mais antigo do Estado. Há um grupo de peregrinos que todos os anos desce de canoas pelo Apeú até Belém, para passar o Círio de Nazaré.
O comitê hidrográfico do Rio Apeú bem que podia começar com essa turma, que entende o - e do - rio. Antes que seja tarde.
A velha estação do Apeú está de pé e virou mercado. Mas as telhas não são as originais, francesas. Confronte à ela tem uma casa coberta com telhas que parece com as da antiga estação. Sigo mais um pouco e logo tenho que abandonar o leito da ferrovia, em frente ao restaurante Palco e um pouco antes da igrejinha onde termina a Romaria que é o equivalente do Círio (a berlinda é uma réplica da locomotiva Castanhal e no ano passado tinha sonoplastia e fumaça cenográfica). Da igrejinha em diante o leito da ferrovia foi tomado pela capoeira. Muitos anos atrás vi parte dele na fazenda do médico Paulo Mota.
Sigo pelas rodovias Transapeú e BR-316 daí por diante até aquela curva grande de Americano, que marca a interseção da rodovia com a ferrovia.
No caminho topo com o improvável: carrancas do S. Francisco, à venda em uma marcenaria na entrada da vicinal que leva à Vila de Pernambuco, perto da Polícia Rodoviária. Um pórtico - de gosto duvidoso - marca o fim do território castanhalense.
Logo depois da Fazenda Itaqui, outra vítima de atropelamento - que não vai sair nos jornais, Lafayette - uma bela jibóia de mais de um metro, que tentou uma travessia arriscada até para bípedes. Definitivamente, há uma incompatibilidade entre automóvel e vida selvagem. Na minha contabilidade a maior quantidade de vítimas é de sapos. Insetos não dá para contar porque ficam grudados no carros. Mas encontrei algumas jacintas (em Bragança não se falava em libélulas e acho que até hoje se falar vai parecer pavulagem ou... você sabe o que).
Na curva grande dá para identificar perfeitamente por onde passava o trem. Restaram menos de cem metros à direita da BR, uma bela trilha. À esquerda o trem passava ao lado do que hoje é uma movimentada fruteira - ou frutaria, como se diz agora - e seguia até a estação. Um morador doa uma relíquia para Luciano: um imenso parafuso enferrujado, de mais ou menos quinze centímetros, que era usado para prender os trilhos e as agulhas aos dormentes nas curvas (nas retas eram usados uns pregos do mesmo tamanho, de cabeça retangular). Os parafusos eram fixados e retirados com uma chave especial, também imensa, e os pregos com marretas e pés-de-cabra gigantes. Na ferrovia tudo era gigantesco. Quando uma locomotiva, um vagão ou uma plataforma descarrilava - em Bragança se diz descarrilhava - era usado um macaco mecânico de mais de metro e meio de altura, acionado no braço pelos cassacos. Macaco hidráulico não existia e era preciso muito forcejar para colocar o trem de volta nos trilhos.
Alongo e descanso um pouco conversando com Pedro, que viu o trem quando era criança e presenciou a remoção dos trilhos. Ele, como muitos da idade, morcegava o trem. Eu também fazia isso, para desespero da minha mãe e santa ira de meu pai. É que em Bragança as mutilações de morcegueiros em acidentes com o trem eram relativamente comuns, e muitos dos meus amigos - melhores e piores - eram mutilados. Por coincidência ou não, eram os moleques mais endiabrados. Um deles tinha uma perna só e jogava bola. E batia um bolão. Sério. Outro perdera metade do pé. O pai dele era uma santa criatura que fazia os caixões dos nossos defuntos (em Bragança tinha uma sociedade beneficiente que fazia enterros de seus associados, minha família toda era associada e papai fazia questão de pagar as irrisórias contribuições religiosamente). O que o pai tinha de bom o filho tinha de pernóstico e endiabrado, encrenqueiro mesmo. E também batia um bolão no campinho onde depois construíram o Ginásio Professor Paixão, da Campanha Nacional de Educandários da Comunidade - CNEC, hoje arruinado.
Pedro me dizia que o trem passava devagar na frente de sua casa aqui em Americano e seu pai aproveitava para jogar as cargas para dentro do vagão (e ele para morcegar).
A estação de Americano está intacta. Até a placa esmaltada com o nome do lugar está inteira. Agora é uma creche com o nome de Irmã Dulce. A plataforma foi fechada com uma parede e incorporada à creche.
Obtenho informações com moradores e com os policiais militares do destacamento. Os moradores me falaram que a estrada foi interrompida porque caiu uma ponte e o desvio leva à uma invasão e aí mora o perigo. De assaltos. Derrubam árvores na estrada para tomar bicicletas e motocicletas. Os policiais dizem que não é assim. Resolvo encarar até onde der. Agora Luciano é batedor e escolta.
Anos atrás passei por aqui e a estrada estava trafegável. Era explicável. Havia uma plantação de pinheiros que estavam sendo abatidos para servir de matéria prima para a fábrica de celulose da Jari, em Monte Dourado. As toras iam de caminhão até o porto de Tacajós, no Guamá, e dali seguiam em balsas até o Rio Jari, em Monte Dourado. Agora, sem interesse econômico em jogo, a estrada está abandonada. O leito passa rente à fazenda de Evandro Mutran. A ponte rompida me obriga fazer uso de um desvio. Completo vinte quilômetros de caminhada. Resolvo parar por hoje e fazer um levantamento do terreno, para prosseguir amanhã. Sigo até onde dá, logo depois da invasão da Travessa 21 de Abril. As chuvas recentes destruíram a vicinal, que é mantida pelo extratores de piçarra e pelo Mutran, que sempre atende os pedidos dos moradores. Dei o levantamento por terminado e regressei, avisando os moradores que o ramal estava interrompido. Um jovem morador nos disse que ia procurar o Mutran para que ele mandasse um trator arrumá-lo.
Sigo para Santa Izabel para fazer o levantamento da rota de amanhã, em sentido contrário. A caminhomete superaquece. Temos que parar de vez em quando para esfriar o motor. Enchemos o radiador com nossa ração de água mineral. Conseguimos chegar até a ponte, pelo outro lado. Agora sei que o lugar se chama Paxiúba e o leito da estrada de ferro é perfeitamente identificável.
Amanhã recomeço deste exato ponto, que fica distante uns sete quilômetros do local onde ficava a estação de Santa Izabel.
Espero chegar e, se der, passar de Benevides, a primeira colônia agrícola da estrada. Formada por colonos franceses, alguns deles egressos da Comuna de Paris.
Comentários
Larga estes carros, Alencar. Andando não tem esse problema! ;-)
É a maior imbecilidade matar cobra. Ela realmente não faz mal algum. Pelo contrário, equilibram com sua dieta comendo sapo, roedores e outras "cositas mas".
Eu já quase capotei tentando desviar de uma indo pra salinas. Não consegui!
Quando superaquece é só parar, alongar, tomar uns goles de água, descansar um pouco e seguir viagem.
Hoje, bem na curva da Moema, encontrei mais uma jibóia atropelada. Um filhote de uns quarenta centímetros. Olhei rapidamente e parecia um cordão. Fui conferir, era uma jiboinha, quase mumificada pelo sol.
Também tenho muito cuidado. Não mato nem imbuá. Mas tive que esmagar algumas mutucas. Era elas ou eu, amigo.
Abraços do
Alencar
Gorayeb, o maior especialista em mutucas do mundo - isso mesmo, camarada - deu a explicação em um comentário.
Espero que ele compreenda esses mutucucídios que pratiquei em legítima defesa.
Vou pedir para Araceli fazer algumas fotos e colocar aqui.