A Rota da Estrada de Ferro: de Nova Timboteua a Igarapé-Açu
No quinto dia de caminhada a Rota da Estrada de Ferro vai me levar a Igarapé-Açu.
Cedinho, como convém, depois dos preparativos de rotina e das fotos, ajudo a colocar comida para as galinhas do Aldinho, deixo Mira e Vivi na casa de Dona Nazaré e vou tomar café na barraca da Fátima, como havia prometido na véspera. Depois da foto tomo mingau na barraca da irmã dela. Não poderia sair daqui sem tomar o famoso mingau de milho de Nova Timboteua. Em julho acontece aqui a Festa do Mingau, um megaevento. Muita festa, muito mingau e muito barulho. Também, só o Prefeito tem três trios elétricos. São tantos que tem que organizar: cada dia sai um e somente um.
A velha Estação está de pé. Agora é a agência dos Correios. Mas os armazéns da ferrovia não existem mais. E a placa de aço esmaltado - igual ao das antigas placas de ruas - fica meio escondida. Só avista quem procura por ela.
A estrada agora é de terra e a caminhada é melhor.
Poucos quilômetros depois do lixão, que já toma um quarto da estrada - era para ser um aterro sanitário, mas os caçambeiros contratados pela Prefeitura foram impedidos de lançar o lixo no local certo e agora estão jogando na beira da estrada mesmo - encontro uma casinha azul, com um mural na mais pura arte naïf. Tivesse mais sorte, o artista poderia se tornar um Rivera ou um Orozco no tucupi. Ou no mingau. Talento bruto ele tem. Leva jeito.
Mais uma pernada e chego à Vila Terreirão. No final de semana foi a Festa de S. Sebastião. O mastro ainda está de pé, para ser derribado no próximo final de semana. Além do estandarte do santo, tem frutas - algumas já maduras e passando do ponto - e uns sacos plásticos com coisas dentro. Agora tem dessa arrumação nos mastros. Antigamente não era assim. Em Tracuateua nos mastros tinha até embalagens plásticas de achocolatados. Definitivamente, os mastros estão ficando modernos. Logo logo vão ficar pós-modernos e high tech. Menos mal, pois pelo menos ainda tem mastro. E festas religiosas que, lá no fundão, deixam palpitar um coração pagão, yorubá ou tupinambá. O coreto é uma miniatura. Mas tem coreto. Melhor que nada. Pensando bem, esse coreto é uma gracinha.
Topei com um urubu preto, desgarrado. Parecia um filhotão, pois deixou-se fotografar sem alçar vôo. Mas estava deslocado, pois este é um território de gerebas. Vai ver que foi escorraçado do seu território urbano.
Chego no grande juncal que me avisa: Livramento está perto. O juncal está cheião e verdinho. Alguns maços já foram cortados e estão murchando ali mesmo. Garças reais - vasqueiras - e galinhas d'água, em maior quantidade, fazem a catação. Esta parte da caminhada é uma boniteza só. Logo diviso o retângulo negro da ponte do Livramento, sobre o Rio Maracanã, que segue para o Atlântico e empresta seu nome para o Município que fica perto daqui, em linha reta. Para dar uma idéia, o Rio Maracanã aqui já recebeu o Rio Taciateua, que fica no final daquele ladeirão da Estrada de Salinas.
As pontes - do Sapucaia (sobre o Rio Caeté), do Livramento e de Jambu-Açu - são os registros materiais mais perenes da Estrada de Ferro. Como não temos terremotos ou vulcões e não são alvos militares, elas são praticamente indestrutíveis. Igual a esta do Livramento conheço outra, na Madeira-Mamoré, já encostando na Bolívia. A ponte está bem cuidada e pintada de preto e amarelo. Passa um carro de cada vez. Bem ao lado, na cabeceira, uma caixa d'água igualzinha a da saída de Bragança, só que melhor conservada. No fotoblog do Lafayette tem uma foto da ponte. Essa ponte é um portento da tecnologia. É um ícone desta Rota. Um dia ainda vou ver miniaturas dela sendo vendidas como souvernir (chaveiros, ímas e o escambau). Todas elas merecem ser tombadas (no bom sentido, por favor). Algum deputado se habilita? Esta é uma idéia feito samba e passarinho, é de quem pegar.
O contraste dela com o rio de águas escuras é perfeito.
Soube, pela Dani, que lavava roupas no rio, que a duzentos metros da rodovia existem as ruínas da velha Estação. Como a caminhada hoje é longa e não há trilha, deixo a foto para outra vez. Esqueci de dizer que nesta parte da rota a rodovia não acompanha o leito da ferrovia, para evitar o ladeirão desta parte do vale do Rio Maracanã. Mas um antigo morador me confirma que elas se cruzam três vezes antes de S. Luis.
No caminho, pouco antes do Cemitério de S. Luis, encontro a vicinal que leva à Lagoa Azul que o Lafayette e os jipeiros adoram (tem foto no fotoblog dele também). O Cemitério está arrumadinho e as sepulturas estão caiadas.
Na vila paro para alongar e descansar um pouco, conversando com Dona Joana, que desanca o Prefeito de Igarapé-Açu, que não completou a iluminação do canteiro central iniciada pelo anterior e ainda retirou uns postes para levar para outro lugar. Me aponta uma casa nova na frente da sua e diz ser de um coronel reformado da PM que agora é advogado.
Despeço-me e sigo.
A chuva da noite anterior barreou os igarapés. Que mesmo assim continuam bonitos e refletindo a capoeira que restou.
E assim vou seguindo pela estrada, agora mais aproximada da velha ferrovia, que dá para identificar em certos trechos pelos cortes.
Dei sorte com o tempo, mas tive que parar mais uma vez para descansar. Compreensível. Afinal, serão 32 quilômetros a vencer.
Percebo que estou chegando quando topo com um bairro distante chamado Base. Vem de ser o local onde havia uma base aérea norte-americana e operava um dirigível - um zeppelin, como se dizia - que patrulhava esta parte do Atlântico, em busca de submarinos alemães durante a Segunda Guerra. Quando passei aqui de trem ainda havia a torre - basicamente, uma estrutura metálica de uns dez metros mais ou menos - onde era ancorado o dirigível (um cabo era lançado de bordo, era enganchado na torre pelo pessoal de terra e tracionado para aproximar a aeronave do solo). Até meados dos anos setenta ainda cheguei a ver essa torre aqui. Agora só existe uma instalação da Aeronáutica - que herdou as bases norte-americanas aqui e no Rio Grande do Norte - abandonada e depredada. Soube que até as casamatas estão em ruínas.
Mais uma pernada e avisto a samaumeira na entrada de Igarapé-Açu, que o cansaço faz parecer distanciar-se de mim enquanto avanço.
No local onde era a estação agora é, ao que me pareceu, um cruzamento, na frente da igreja. Do outro lado o antigo Mercado Municipal, cercado por tapumes e com uma placa ainda do governo estadual anterior. Soube pelo vereador Elizeu, dono do Hotel Igasat, onde fiquei, que é um sumidouro de dinheiro. Menos mal que não foi demolido. A estrutura continua a mesma.
Igarapé-açu era mais ou menos a metade da viagem do trem, que saía de Bragança cinco da manhã. Os passageiros almoçavam aqui no Mercado. Alguns. Outros preferiam trazer o almoço de casa. Em latas de leite Ninho. Família pequena, uma ou duas latinhas. Família grande, uma latona. Dentro, no mais das vezes, farinha d'água e carne assada, da melhor qualidade. Quem não trazia comida encarava o boião do Mercado. Que virava um formigueiro de gente apressada para engolir o que fosse possível antes do trem apitar e provocar uma debandada geral rumo aos vagões. Tempos depois, retornando de Machu Picchu - um dia volto lá - vi cena parecida no Trem da Morte boliviano, que liga Santa Cruz de La Sierra a Puerto Suarez, perto de Corumbá. Com outro cardápio.
Desejo boa sorte para o Mercado Municipal, que tenta ser um centro cultural. Sorte que faltou para a velha estação do trem.
Nos reencontramos no post seguinte, já de S. Francisco.
Cedinho, como convém, depois dos preparativos de rotina e das fotos, ajudo a colocar comida para as galinhas do Aldinho, deixo Mira e Vivi na casa de Dona Nazaré e vou tomar café na barraca da Fátima, como havia prometido na véspera. Depois da foto tomo mingau na barraca da irmã dela. Não poderia sair daqui sem tomar o famoso mingau de milho de Nova Timboteua. Em julho acontece aqui a Festa do Mingau, um megaevento. Muita festa, muito mingau e muito barulho. Também, só o Prefeito tem três trios elétricos. São tantos que tem que organizar: cada dia sai um e somente um.
A velha Estação está de pé. Agora é a agência dos Correios. Mas os armazéns da ferrovia não existem mais. E a placa de aço esmaltado - igual ao das antigas placas de ruas - fica meio escondida. Só avista quem procura por ela.
A estrada agora é de terra e a caminhada é melhor.
Poucos quilômetros depois do lixão, que já toma um quarto da estrada - era para ser um aterro sanitário, mas os caçambeiros contratados pela Prefeitura foram impedidos de lançar o lixo no local certo e agora estão jogando na beira da estrada mesmo - encontro uma casinha azul, com um mural na mais pura arte naïf. Tivesse mais sorte, o artista poderia se tornar um Rivera ou um Orozco no tucupi. Ou no mingau. Talento bruto ele tem. Leva jeito.
Mais uma pernada e chego à Vila Terreirão. No final de semana foi a Festa de S. Sebastião. O mastro ainda está de pé, para ser derribado no próximo final de semana. Além do estandarte do santo, tem frutas - algumas já maduras e passando do ponto - e uns sacos plásticos com coisas dentro. Agora tem dessa arrumação nos mastros. Antigamente não era assim. Em Tracuateua nos mastros tinha até embalagens plásticas de achocolatados. Definitivamente, os mastros estão ficando modernos. Logo logo vão ficar pós-modernos e high tech. Menos mal, pois pelo menos ainda tem mastro. E festas religiosas que, lá no fundão, deixam palpitar um coração pagão, yorubá ou tupinambá. O coreto é uma miniatura. Mas tem coreto. Melhor que nada. Pensando bem, esse coreto é uma gracinha.
Topei com um urubu preto, desgarrado. Parecia um filhotão, pois deixou-se fotografar sem alçar vôo. Mas estava deslocado, pois este é um território de gerebas. Vai ver que foi escorraçado do seu território urbano.
Chego no grande juncal que me avisa: Livramento está perto. O juncal está cheião e verdinho. Alguns maços já foram cortados e estão murchando ali mesmo. Garças reais - vasqueiras - e galinhas d'água, em maior quantidade, fazem a catação. Esta parte da caminhada é uma boniteza só. Logo diviso o retângulo negro da ponte do Livramento, sobre o Rio Maracanã, que segue para o Atlântico e empresta seu nome para o Município que fica perto daqui, em linha reta. Para dar uma idéia, o Rio Maracanã aqui já recebeu o Rio Taciateua, que fica no final daquele ladeirão da Estrada de Salinas.
As pontes - do Sapucaia (sobre o Rio Caeté), do Livramento e de Jambu-Açu - são os registros materiais mais perenes da Estrada de Ferro. Como não temos terremotos ou vulcões e não são alvos militares, elas são praticamente indestrutíveis. Igual a esta do Livramento conheço outra, na Madeira-Mamoré, já encostando na Bolívia. A ponte está bem cuidada e pintada de preto e amarelo. Passa um carro de cada vez. Bem ao lado, na cabeceira, uma caixa d'água igualzinha a da saída de Bragança, só que melhor conservada. No fotoblog do Lafayette tem uma foto da ponte. Essa ponte é um portento da tecnologia. É um ícone desta Rota. Um dia ainda vou ver miniaturas dela sendo vendidas como souvernir (chaveiros, ímas e o escambau). Todas elas merecem ser tombadas (no bom sentido, por favor). Algum deputado se habilita? Esta é uma idéia feito samba e passarinho, é de quem pegar.
O contraste dela com o rio de águas escuras é perfeito.
Soube, pela Dani, que lavava roupas no rio, que a duzentos metros da rodovia existem as ruínas da velha Estação. Como a caminhada hoje é longa e não há trilha, deixo a foto para outra vez. Esqueci de dizer que nesta parte da rota a rodovia não acompanha o leito da ferrovia, para evitar o ladeirão desta parte do vale do Rio Maracanã. Mas um antigo morador me confirma que elas se cruzam três vezes antes de S. Luis.
No caminho, pouco antes do Cemitério de S. Luis, encontro a vicinal que leva à Lagoa Azul que o Lafayette e os jipeiros adoram (tem foto no fotoblog dele também). O Cemitério está arrumadinho e as sepulturas estão caiadas.
Na vila paro para alongar e descansar um pouco, conversando com Dona Joana, que desanca o Prefeito de Igarapé-Açu, que não completou a iluminação do canteiro central iniciada pelo anterior e ainda retirou uns postes para levar para outro lugar. Me aponta uma casa nova na frente da sua e diz ser de um coronel reformado da PM que agora é advogado.
Despeço-me e sigo.
A chuva da noite anterior barreou os igarapés. Que mesmo assim continuam bonitos e refletindo a capoeira que restou.
E assim vou seguindo pela estrada, agora mais aproximada da velha ferrovia, que dá para identificar em certos trechos pelos cortes.
Dei sorte com o tempo, mas tive que parar mais uma vez para descansar. Compreensível. Afinal, serão 32 quilômetros a vencer.
Percebo que estou chegando quando topo com um bairro distante chamado Base. Vem de ser o local onde havia uma base aérea norte-americana e operava um dirigível - um zeppelin, como se dizia - que patrulhava esta parte do Atlântico, em busca de submarinos alemães durante a Segunda Guerra. Quando passei aqui de trem ainda havia a torre - basicamente, uma estrutura metálica de uns dez metros mais ou menos - onde era ancorado o dirigível (um cabo era lançado de bordo, era enganchado na torre pelo pessoal de terra e tracionado para aproximar a aeronave do solo). Até meados dos anos setenta ainda cheguei a ver essa torre aqui. Agora só existe uma instalação da Aeronáutica - que herdou as bases norte-americanas aqui e no Rio Grande do Norte - abandonada e depredada. Soube que até as casamatas estão em ruínas.
Mais uma pernada e avisto a samaumeira na entrada de Igarapé-Açu, que o cansaço faz parecer distanciar-se de mim enquanto avanço.
No local onde era a estação agora é, ao que me pareceu, um cruzamento, na frente da igreja. Do outro lado o antigo Mercado Municipal, cercado por tapumes e com uma placa ainda do governo estadual anterior. Soube pelo vereador Elizeu, dono do Hotel Igasat, onde fiquei, que é um sumidouro de dinheiro. Menos mal que não foi demolido. A estrutura continua a mesma.
Igarapé-açu era mais ou menos a metade da viagem do trem, que saía de Bragança cinco da manhã. Os passageiros almoçavam aqui no Mercado. Alguns. Outros preferiam trazer o almoço de casa. Em latas de leite Ninho. Família pequena, uma ou duas latinhas. Família grande, uma latona. Dentro, no mais das vezes, farinha d'água e carne assada, da melhor qualidade. Quem não trazia comida encarava o boião do Mercado. Que virava um formigueiro de gente apressada para engolir o que fosse possível antes do trem apitar e provocar uma debandada geral rumo aos vagões. Tempos depois, retornando de Machu Picchu - um dia volto lá - vi cena parecida no Trem da Morte boliviano, que liga Santa Cruz de La Sierra a Puerto Suarez, perto de Corumbá. Com outro cardápio.
Desejo boa sorte para o Mercado Municipal, que tenta ser um centro cultural. Sorte que faltou para a velha estação do trem.
Nos reencontramos no post seguinte, já de S. Francisco.
Comentários
acompanho sua viagem. E seu relato é tão perfeito que vejo os lugares , ouço os ruídos, sinto os cheiros e os gostos!
Cuide bem dos pés! Não deixe as bolhas inflamarem. Uma massagenzinha com andiroba, à noite, faz bem para o inchaço.
O estouro da boiada de Puerto Suarez eu também vivi, em 1968!
Caramba! Fiz a rota - Baurú - Corumbá - Puerto Suarez - Santa Cruz - La Paz - Oruro, passando por Roboré, antes de Puerto, um lugar perdido onde tive a impressão de que o tempo e a história não avançavam!
Abraço grande.
As bolhas foram domadas com agulha e linha.
Nos vemos em Castanhal.