Ai de ti, Belém! (3)

Além de falida, Belém tem problemas outros que deixariam mal qualquer cidade, mesmo que com boa saúde financeira e econômica.
Um desses problemas é sua relação adversa com o princípio da legalidade.
A administração pública, de Belém inclusive, só pode fazer o que a lei manda. Trocado assim em miúdos, esse é o princípio da legalidade (art. 37 da Constituição da República). Não é preciso mais que simplesmente viver em Belém para ter claro, muito claro, que esse princípio não é seguido à risca pela administração pública municipal. Há muito tempo, diga-se, a bem da verdade.
Mas o setor privado também está submetido à lei, embora a regra seja outra: ele pode fazer tudo o que a lei não proíbe. Ou, por outras palavras, pode fazer tudo o que a lei permite, e não pode ser obrigado a fazer o que ela não imponha. Outra vez: qualquer vivente daqui de Belém sabe que o setor privado local - e de todo o Pará, outra vez a bem da verdade - não é muito afeito ao cumprimento da lei, em escala e graus variegados.
Juntadas essas duas metades, o resultado é uma verdadeira incompatibilidade entre a cidade e tais princípios, com resultados adversos para ela e para seus cidadãos, inclusive os que tentam respeitá-los.
Desde Max Weber (Economia e Sociedade) sabe-se que o direito calculável é essencial para o êxito do capitalismo moderno. Regras do jogo claras, compreensíveis e cumpridas por todos - mas todos mesmo - são da essência do capitalismo moderno. Em argumento a contrario sensu, se não há direito calculável, não há capitalismo moderno. Aqui em Belém, embora exista direito calculável - em tese - o direito não é respeitado pelos setores público e privado. O que existe em tese não existe por inteiro no mundo real. O direito em Belém é de escassa efetividade, notadamente naquelas partes que mais interessam à cidade e aos cidadãos. Quem se der à pachorra de ler a Lei Orgânica do Município de Belém - como vem fazendo o Belenâmbulo - vai encontrar mais artigos descumpridos que cumpridos.
Essa estreita relação de dependência recíproca entre economia, direito e política não é desconhecida, não é novidade, e depois de Weber diversos economistas demonstraram-na com autoridade intelectual suficiente para receberem o Prêmio Nobel de Economia, como foi o caso de Douglass North, um insuspeito liberal de boa cepa. Resumindo, com elevado risco de simplificação: para North o crescimento econômico depende de instituições jurídicas sólidas e bem desenvolvidas, notadamente aquelas que garantam - claro! - o direito de propriedade. Exatamente o que nos falta em Belém e, ademais, em todo o Estado do Pará.
Dos exemplos superabundantes vou citar alguns neste ensaio.
As ruas, praças e calçadas adjacentes são propriedade pública e destinadas preponderantemente ao exercício de um direito fundamental, o direito de ir e vir. Assim como fazem com a propriedade privada, as instituições jurídicas nacionais e subnacionais garantem essa propriedade pública e esse direito fundamental de ir e vir. Em Belém vastas porções das ruas, praças e calçadas foram apropriadas por particulares, para o exercício do comércio dito ambulante (caso único de ambulante fixo). Dessa primeira transgressão básica, dessa violação primária a duas instituições jurídicas - o direito de propriedade e o direito de ir e vir - deveria resultar pura e simplesmente a ação coercitiva da administração pública municipal, de molde a impedir, inclusive com o uso legítimo da violência - coerção legitimada pelo consenso, diria Gramsci - para, sem mais delongas, restaurar o respeito às regras do jogo e, sejamos também explícitos, do processo civilizatório (direito é portador de civilização). Como sabem todos os viventes de Belém ou que por aqui passam, a administração pública municipal simplesmente não cumpre seu dever legal e, ao longo dos anos, consentiu no crescimento dessa transgressão, a ponto de se tornar esse um problema também político, extenso e grave. As fronteiras foram se esbatendo a tal ponto que atualmente os transgressores se consideram portadores de direitos! Claro que quem comete uma primeira ilicitude - se apropriar do espaço público, no caso - não terá escrúpulo algum em continuar transgredindo, e por isso mesmo o comércio estabelecido nesse espaço é, quase sempre, ilícito (evasão, sonegação, contrabando, descaminho, pirataria, falsificação, receptação etc). Não precisa dizer que tais ilicitudes enfraquecem as instituições jurídicas e geram um ambiente econômico adverso ao crescimento da economia municipal, conforme a insuspeita lição de North. E na exata medida em que a repressão estatal - municipal, estadual e federal - não acontece, toda a cadeia de negócios lícitos que seriam gerados é substituída por uma cadeia de negócios ilícitos. Nesse ambiente econômico degradado só sobrevivem empreendedores do ilícito, que tem na ilicitude uma vantagem competitiva sobre eventuais competidores do mercado lícito e estabelecido conforme as instituições jurídicas (e com a própria Lex Mercatoria).
Para dar uma medida econômica do tamanho de tais ilicitudes, em uma única redada da Polícia Federal em cooperação com autoridades municipais e estaduais foram apreendidas mercadorias ilícítas de valor superior a um milhão de reais. Convenhamos, não se trata mais de estoques de pequenos vendedores ambulantes, mas de um meganegócio ilícito a contaminar o ambiente econômico municipal onde a exceção - a transgressão - torna-se a regra. Esse ambiente econômico degradado atrai o que há de pior no comércio e na indústria, da pirataria à falsificação, passando pela receptação, pela corrupção e o que mais a criatividade humana permitir. E os negócios lícitos que seriam gerados pela coerção simplesmente não são sequer cogitados pelos agentes econômicos. Por exemplo, o aluguel de espaços para guardar mercadorias lícitas - como há em Fortaleza-CE - é mercado que seria muito maior em Belém, se tais mercadorias não ficassem armazenadas permanentemente nas ruas, calçadas e praças.
Outro exemplo de mais fácil compreensão é a apropriação das ruas - e até calçadas - pelos proprietários de automóveis, que estacionam-nos em locais destinados à circulação dessas mesmas máquinas, no interesse do exercício do direito de ir e vir de seus próprios donos. A última vez que isso foi tentado aqui em Belém, na gestão do Prefeito Edmilson Rodrigues, quando a CtBel foi dirigida pela engenheira Cristina Baddini, com bons resultados, mas sob a crítica dos interessados na apropriação privada dos espaços públicos. Ocorre que se esse elementar dever da autoridade municipal - o de coibir o estacionamento em local proibido - fosse exercido, seria gerado um poderoso mercado para estacionamentos particulares, atraindo investidores para esse negócio lícito. Como a autoridade municipal prefere a desídia populista, o mercado de estacionamentos particulares em Belém é apenas ridículo. Mas proliferam estacionamentos em locais proibidos e o trabalho precário de flanelinhas e flanelões, não raros limítrofes a modalidades delitivas.
Esses dois exemplos simples já são bastante e suficientes para demonstrar como o descumprimento do princípio da legalidade pelos setores público e privado no Município de Belém opera contra os interesses da cidade e dos cidadãos.
Mas esses exemplos poderiam ser multiplicados, sempre em desfavor da cidade e dos cidadãos. Para cada instituição jurídica enfraquecida pela ação ou omissão - sempre deliberada, admitamos - de autoridades, agentes econômicos ou simples pessoas físicas, é um prego a mais no caixão em que há de ser enterrada a cidade e a cidadania.
Ai de ti, Belém!

Comentários

Postagens mais visitadas