Notícias de Iquitos (5)
8 de dezembro de 2009, terça-feira.
Acordei cedo o bastante para voltar à laguna acompanhando o casal peruana-espanhol, que perdera a primeira oportunidade. Agora temos a companhia de mais espanhóis em outro grupo, com outro guia. Vamos dividir a laguna com eles.
As ciganas estão um pouco mais adiante, poucos metros.
Os anuns deram as caras fazendo curtos voos. A preguiça não foi mais vista. O martim pescador também não. Mas a laguna continua lindíssima neste último amanhecer no Cumaceba.
De volta ao lodge noto que o ninhal dos japiins está mais animado, sem razão aparente. O papagaio que vigiava minha porta mudou de posto e a arara canindé está no caminho da cozinha, aprontando o suficiente para ser acalmada com um naco de alguma coisa dura o bastante para deixá-la ocupada por alguns minutos.
Saímos para a última caminhada, margeando o Amazonas, no sentido contrário da trilha do dia anterior. O cachorro do lodge nos acompanha e recruta mais dois no caminho. A trilha é seca e as botas de borracha foram mais precaução que necessidade. Depois de algumas roças e casas de moradores, topamos com uma escola construída por uma denominação evangélica - que marcam presença forte por aqui - e doada ao governo peruano. São duas escolas, sobre pilares de concreto. Os professores vem de Iquitos e passam a semana aqui. Tem uma igrejinha e um campo de futebol. Hoje é feriado e as pessoas estão entregues às festas ou simplesmente estão reunidas umas nas casas das outras. Uma casa tem gerador elétrico e uma televisão. De um rádio jorra algo a meio caminho entre tecnocumbia e reggaetón. Por falar nisso, a banda Calypso faz sucesso aqui no Peru. Em Cuzco seus CDs e DVDs piratas são encontrados em cada esquina. Joelma e Chimbinha são bem conhecidos.
Uma calçada de metro e meio liga o Amazonas a um igarapé - o mesmo a que se liga a laguna do lodge - e isso encurta o caminho para Iquitos em duas horas. Caminhamos por ela até chegar ao igarapé de águas escuras, onde nossos cachorros se refrescam. No caminho topamos com uma interessante árvore, parecida com o nosso pau-ferro. Retornamos em seguida e demos uma chegada à margem do Amazonas, onde arroz secava sobre lonas plásticas.
Depois do almoço fazemos o caminho de volta para Iquitos, com uma breve parada em um pueblo um pouco afastado da cidade. Em um açude são criados cinco paiches (pirarucus), que comem quase na mão de Luis. Em outro estão os jacarés e umas tartarugas pequenas, parecidas com peremas. Grandes vitórias régias encantam europeus e peruanos. No entorno, uma boa amostra da pobreza alegre de Iquitos: casas cobertas de palha receberiam em burocratês a designação de habitações subnormais, a água chega em bicas. A tecnocumbia rola solta. A parte profana do feriado é bem aproveitada aqui neste pueblo.
Agora presto mais atenção na pequena refinaria e no porto de Iquitos. Os navios maiores ficam ao largo e a carga - madeira serrada - é embarcada pelo costado, com os paus de carga do próprio navio. A Marinha peruana tem presença forte por aqui. Identifico o porto de onde partirei amanhã para Santa Rosa/Tabatinga.
No porto nos despedimos e tomo um mototáxi para o hostal La Pascana, onde sou atendido pelo simpático proprietário, um peruano alto com um bigode a meio caminho entre o de Carlitos e de Clark Gable. Desta vez não quis pagamento antecipado. Póngase cómodo primero, disse-me, ajudando com a bagagem (mala e duas mochilas, uma delas com as roupas e o cajado usado no Caminho Inca, um trambolho esquisito revestido de um chamativo plástico verde que tive de aplicar no aeroporto de Cuzco).
Saio para sacar uns poucos soles no caixa automático do Scotiabank e fotografar mais alguns casarões, inclusive o do sindicato dos operários da construção civil. Não me animei a visitar o distrito de Belén, com suas casas cobertas de palha e seu mercado onde dizem que tem de tudo, como nosso Ver-o-Peso. Aliás, dizem que tem muito mais, porque se encontra até macaco frito na hora e outros bichos.
Em um casarão com azulejos portugueses bem conservado no Jirón Sargento Lores fica o restaurante Gran Maloca. Resolvo experimentar. Ele tem a fama de ser o restaurante mais requintado de Iquitos. É cedo da noite e sou o único cliente. Apesar de estar de sandálias Havaianas não causo estranheza. Aqui parece que turista com jeitão de gringo não espanta. Peço um Pisco Sour (mais caro que o original do Hotel Maury) e um Venado al Amazonas (um bife de veado coberto com um molho verde feito de medula de boi, guarnecido de verduras, coentro, coco ralado tostado, macacheira salteada e arroz). No cardápio uma foto - retocada - da dona do restaurante e um texto louvando as delícias que primeiro teriam encantado os iquitenhos e depois o mundo. Sinceramente, veado não se presta para essas frescuras todas não. O resultado é horrível. Melhor um bom guisado de panela com os temperos triviais. Não gostei e paguei caro: 35 reais mais ou menos. Mas há quem goste (ver aqui). Dispenso a sobremesa e saio em busca de uma sorveteria onde agora já sei que vou encontrar frutas regionais, na Plaza de Armas.
Sou surpreendido no caminho com uma carreata de mototáxis, muito mais ruidosa que se possa imaginar. O time de futebol preferido ganhara o jogo. A Polícia Nacional não gostou da arruaça e abandonou seu quartel ali perto e veio armada até os dentes - de cartucheira doze! - em caminhonetes que atravessaram a carreata bem no meio. Antes de chegar na Plaza de Armas os líderes já estavam jogados na carroceria das caminhonetes e a carreata desfeita com bons argumentos. A julgar pela cara das pessoas, parece que isso é, digamos assim, algo mais ou menos normal por aqui.
Chego à sorveteria Giornata são e salvo e peço um helado de Pijuayo, a dois reais o cascão de uma bola. Trata-se de sorvete de... pupunha! O gosto é excelente, mas o sorvete não é assim um Cairu. Aqui também tem copoazu (cupuaçu), aguate (buriti) e guanábano (graviola). Do huasaí - açaí - aqui aproveita-se apenas o palmito, da árvore adulta e velha, desfiado em tiras finas como se fosse um talharim, para saladas, invariavelmente temperadas com limão. O resultado é excelente. É quase um ceviche de palmito.
Dou um último bordejo no Boulevard, passando pela casa que era o comércio de Fitzcarraldo, agora um restaurante com o nome dele. Aliás, aqui ele é nome de rua, controvérsias a parte. Nas lojinhas de artesanato gasto meus últimos soles com um brinco de pena de pavão e vou dormir. Amanhã cedo tenho que estar no porto de Huequitos e tomar a lancha rápida para Santa Rosa e daí para Tabatinga, iniciando a descida do Rio Amazonas e o caminho de volta para casa.
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