Notícias de Letícia

10 de dezembro de 2009, quinta-feira.
Acordo tarde, sem compromissos outros que não conhecer um pouco mais de Tabatinga e Letícia.
Resolvo tomar café no mercado de Tabatinga. Os mercados são mais ou menos a síntese das cidades. O daqui não é diferente.
É também, para mim, um retorno ao passado.
Aqui em Tabatinga reencontro farinha d´água em paneiro, como antigamente em Bragança e mesmo em Belém. Aqui também usam paneiro feito com a tala de guarumã. Para empalhar a farinha, folhas de guarumã. A diferença é que aqui os paneiros são mais curtos e largos, do tamanho dos que atualmente se transportam mangas e açaí na Feira do Açaí, em Belém. Aliás, de paneiro vem o verbo empaneirar, que os mais jovens com certeza não conhecem. Ele designa o ato de colocar a camisa para dentro da calça, como se faz com a cabeça dos paneiros de farinha. É um verbo perfeito, pois nada mais parecido com a palha cuidadosamente colocada para dentro da cabeça de um paneiro. A folha de guarumã está em desuso em Belém, mas até uns vinte anos atrás ainda se as usava para embrulhar carne e peixe nos mercados. Tem a óbvia vantagem de ser biodegradável. Quem sabe não está na hora de voltar a usar a guarumã em substituição ao plástico. Eu já estou usando sacolas de tecido - ditas retornáveis - para fazer compras em supermercados, o que causa espanto para os demais consumidores e arrumadores.
O mercado de Tabatinga está dividido também em um para carne e outro para peixe. Na frente do de carne encontro indígenas vendendo pupunhas, macaxeiras, ingás e um fruto que me pareceu marajá. Dentro tem mais ou menos as mesmas coisas que temos nos mercados de Belém. Mas aqui tem muito mais bananas, que acompanha todas as refeições nesta parte da Amazônia de tríplice fronteira. Resolvo tomar café com tapioca. A influência colombiana está presente nos tostones, bananas fritas e esmagadas a puñetazos.
No mercado de peixe encontro uma grande variedade de peixes de água doce, dos imensos pirarucus a um estranho pacu, de couro e com uma fileira de pequenas protuberâncias de cada lado. Como os acaris, estão vivos e vão continuar assim até na hora de ir para a panela. Tem ainda gigantescos tambaquis e tucunarés, que fazem esses criados em cativeiros parecerem anões.
Aqui fala-se indistintamente português e espanhol.
A rua faz uma curva em direção ao porto, coalhada de pequenos comércios que vendem de um tudo. De comida a produtos industrializados procedentes de todos os lugares do mundo. Na beira do rio reconheço o porto por onde cheguei e identifico a lancha rápida que vai me levar a Manaus amanhã. Um terminal turístico faz as honras dos viajantes que chegam, mas não adianta muita coisa, pois tem-se que caminhar por escadas e tábuas para chegar ou sair (o rio está baixo nesta época do ano). Subo por outra rua, tomada de comércio de roupas dos dois lados. Esqueiro-me por um beco, saio em uma rua residencial e é como se voltasse no tempo. É uma rua de terra, com uma ladeira. Está no centro de Tabatinga, mas é como se fosse o interior de uma vila perdida em algum lugar da Amazônia. Esse contraste é a regra aqui nesta parte do mundo.
O asfalto me leva de volta ao mercado, onde noto um aumento na quantidade de indígenas do lado de fora, vendendo mais do mesmo. Agora tem quem venda patauá, que não via há anos. Um indiozinho come a ingá que trouxe para vender. As pupunhas cozidas ou cruas são abundantes. É safra aqui também. Este mercado me leva às profundezas da Amazônia brasileira e colombiana, mas me leva mais fundo ainda no passado, meu e de milhares que viveram em cidades amazônicas que perderam esses hábitos com o passar dos anos. Em Bragança, Santarém e outras cidades de beira de rio ainda é mais ou menos assim, mas estamos cada vez mais nos afastando desse passado, para o bem ou para o mal, não sei. O que sei, tenho certeza, é que o estilo de vida que adotamos nas grandes cidades consome muito mais do que a Terra pode suportar e, definitivamente, está chegando a hora de um acerto de contas com o planeta. O way of life do mundo não pode seguir padrões europeus ou norte-americanos. E se o estilo de vida amazônico pode parecer pouco civilizado ou excessivamente frugal, começo a acreditar que os bem pensantes civilizados não são tão bem pensantes assim e, a bem da verdade, nem tão civilizados.
Resolvo caminhar ao longo da Avenida da Amizade, primeiro no sentido do Aeroporto de Tabatinga, retornando quando cheguei na frente do clube dos militares. No caminho paro para tomar um guaraná Baré, naquela garrafona do tamanho da de cerveja. Este guaraná é o melhor que se pode tomar em toda a Amazônia, depois que a Antárctica resolveu acabar com o GuaraSuco. Ela também é dona do Baré, mas teve a esperteza de manter a marca e a garrafa. Como a Coca-Cola manteve o guaraná Jesus em S. Luis do Maranhão.
Na frente do clube militar um grupo de adolescentes resolve explodir um vasilhame plástico de óleo lubrificante na calçada. Correm a tempo e, felizmente, não tem ninguém passando inadvertidamente por perto.
Caminho até o Centro de Informações Turísticas, mantido pela Prefeitura. Não tem mapa da cidade. Mas consigo pelo menos a informação de que estou a uns poucos metros de Letícia. Em outro prédio tem artesanato indígena a venda. Dou uma olhada. Pela conversa de uma das servidoras municipais - que parecia ter passado ali por acaso - fico sabendo que a criminalidade em Tabatinga não é pouca. Ela mesma diz-se vítima de um furto e promete fazer o trabalho da polícia indo em busca de informações nas bocas de fumo. O artesanato indígena é interessante, mas nada excepcional.
Caminho até chegar a Letícia. A fronteira seca é controlada por policiais colombianos, que se preocupam com veículos e não ligam para pedestres.
Sem ser incomodado, caminho pela avenida de duas pistas, com um canteiro central. Não fosse isso e a mudança da língua nos letreiros, não daria para saber que estou na Colômbia.
Se aproxima do meio-dia e os restaurantes estão se preparando para atender a clientela.
Em poucos minutos atinjo os subúrbios de Letícia, do outro lado da cidade.
Volto por outra rua, vagando até chegar em uma onde o movimento indica que estou perto do mercado. Me aproximo da margem do rio e encontro o mercado. Muito mais precário que o de Tabatinga, com mais ou menos as mesmas coisas. Os mesmos peixes, os mesmos produtos.
Chego ao malecón, recentemente construído. O porto é mais ou menos como o de Tabatinga e muito movimentado. Aqui, dá para perceber, hidrovia não é papo furado, é fato. Os portos são mais ou menos organizados e o transporte predominante é hidroviário.
No centro de Letícia tem um comércio um pouco mais sofisticado, com produtos melhores, inclusive bebidas e relógios. Uma biblioteca de um banco estatal mostra um cuidado que não temos no Brasil. Aliás, a existência de bibliotecas boas me impressionou desde a primeira vez que estive na Colômbia e essa relação entre bancos estatais e cultura também. O Museu del Oro, por exemplo, é do Banco Central. E é uma das maravilhas deste Cono Sur. Aliás, essa expressão agora começa a me parecer mais correta do que América Latina. Embora o continente não seja tão cônico assim.
Na praça uma concha acústica está sendo preparada para um festival de música.
Um hotel de boa qualidade não deixa dúvidas que o turismo está mais centrado em Letícia que em Tabatinga. Dizem que parte da riqueza da cidade provém do tráfico de drogas e isso talvez explique o dinamismo econômico desta tríplice fronteira, onde Santa Rosa (Peru) é, flagrantemente, a prima pobre. Paupérrima, aliás.
Volto para a avenida principal, em busca de um restaurante que avistara na vinda. No caminho topo com uma ruazinha onde tem artesanato. Compro golfinhos de madeira e um chapéu panamá (50 reais). Não é tão bom quanto os de Cuenca, no Equador. Em Otavalo, também no Equador, este não sairia por mais de 15 dólares.
Olhando para as pessoas daqui relembro dos quadros de Botero, que nos ensinou a encontrar a beleza das pessoas nas formas rechonchudas. Aqui ser levemente roliço não tira beleza, antes pelo contrário, põe beleza. Botero nos ensinou a romper com padrões estéticos e encontrar beleza em pessoas assim, como estas colombianas e estes colombianos rechonchudos, prontos para entrar ou sair de um quadro dele ou se tornar uma escultura.
Na avenida principal encontro o restaurante. Agora as panelas estão todas sobre o braseiro, à vista dos clientes. A fumaça preteja paredes e teto. Um jovem que parece ser filho da dona está preparando umas tigelas de isopor com caldo, que ferve em um panelão de uns cinquenta litros. Pergunto-lhe qual é a pedida e ele me oferece carne, frango ou peixe. Opto por carne. Ele me trouxe um caldo com um pedaço de carne, banana e choclo (milho). Casemira, a dona, pergunta-me se quero lentilhas e digo que não. Ela prepara um imenso prato feito com carne cozida, arroz, feijão, espaguete, macacheira e farinha d´água, a parte, como é nosso costume também. Gosto destas comidas simples, com a cara do lugar onde são feitas, com personalidade. E pelo jeito os moradores de Letícia também, porque começam a chegar os fregueses. Vendo que fotografo o prato, Casemira pede que seja ela própria fotografada. Os compradores continuam chegando. Aqui parece que todo mundo conhece todo mundo. A conta sai por seis reais. O troco vem em pesos colombianos. Peço permissão para fotografar as panelas que agora estão em plena operação, com uma imensa frigideira com peixe, outra com frango e diversas panelas com carnes e frango, além do panelão com o caldo grande.
Volto para Tabatinga sob o sol e o calor. No caminho compro artesanato indígena no Centro de Informações Turísticas. O calor me afugenta para o ar condicionado da Hospedage Brasil, onde tento usar a Internet e descubro que aqui a conexão não é tão boa assim. Mas deu para saber das últimas de Belém, inclusive a cassação do nosso Prefeito e sua volta ao cargo graças a uma liminar. Informação dos blogs, claro. Fico sabendo mais alguns detalhes do escândalo dos panetones, um Arrudagate e tanto, deu para perceber. Estou voltando ao Brasil.
Quando o sol esfria saio para comer alguma coisa. Escolho uma galinha caipira anunciada em uma das barraquinhas da Avenida da Amizade. Não era galinha, era um galo. Acho que de briga. Ou muito sarado. Nunca tinha experimentado uma coxa tão dura em toda minha vida.
Passo no banco para sacar dinheiro para a viagem amanhã e volto para dormir cedo, pois também cedinho tenho que estar no porto e dali seguir para Manaus.
Agora vou descer o Solimões.

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