Notícias da Trilha Inca (4)
30 de novembro de 2009, segunda-feira.
Desperto antes das quatro horas da manha com o barulho dos trilheiros e porteadores. Acendo a lanterna e meço a pressao arterial, que voltou a subir. Mantive a medicaçao com a mesma dosagem que uso ao nível do mar. De diferente, só a pílula contra soroche, o mal de altitude. Que continua funcionando.
O desayuno foi simples. Afinal, os mantimentos já devem estar chegando ao fim. Ainda assim deu para caprichar uma panqueca com geléia e o de sempre: café, chocolate e chás. A mistura que inventei - chá de coca com chocolate - ganha um seguidor (o australiano, que pensou ser um costume brasileiro).
Nota-se a excitaçao e a ansiedade de todos os grupos, que ingressam muito cedo na Trilha.
Alongo e inicio uma caminhada curta, de mais ou menos dez minutos, para entrar na fila do posto de controle. Os guardas passam por nós em seguida e cinco e meia da manha começam a autorizar a passagem dos trilheiros. Na nossa frente já haviam mais de cem. Atrás deve ter mais do dobro, a julgar pela quantidade de barracas e de gente no acampamento.
Seis horas e vinte minutos chego a Intipunka, a Porta do Sol. O dia está claro e no meio da neblina vejo Machu Picchu. É extasiante. A névoa aumenta o mistério. Visto daqui Machu Picchu é outra coisa. Nao é aquela foto tradicional. É acima dela. Todos paramos para contemplar a cidadela. Intipunku fica lotada de alegres trilheiros. À esquerda, a cidadela; ao fundo, o Wayanapicchu; a direita, a serpenteante estradinha de terra Hiram Bingham; no fundo do vale, o Urubamba. Fantástico. Literalmente. Demoro-me o mais que posso. Confraternizamos. Fazemos fotografias tao logo desocupado o melhor ângulo.
Depois iniciamos a descida até a cidadela, que vai se aproximando pouco a pouco. No caminho encontramos turistas que sobem para Intipunku e nos olham como coisas raras. Alguns nos cumprimentam e felicitam.
Sete horas da manha estou em Machu Picchu. É quase inacreditável que mais de vinte anos depois eu tenha chegado a Machu Picchu por esse Caminho. Nunca imaginei, nunca me passou pela cabeça que um dia faria isso. Agora que fiz, já faço planos para chegar pela Trilha Salcantay, um pouco mais acima.
Descansando, enquanto Gerson reúne o grupo para acertar detalhes da visita, olho pelo binóculo Intipunku. Faz sol e agora percebo que caminhamos pela escarpa da montanha, na diagonal. Sinceramente, se soubesse disso antes nao sei se teria encarado essa parada. Vejo as pessoas aproveitando o sol do dia para subir o Wayanapicchu, o que pretendo fazer amanha.
Guiado por Gerson, visitamos Machu Picchu até por volta de onze e meia.
Machu Picchu está muito mudada. As restauraçoes incluíram a cobertura - de paja brava - de alguns recintos. Os guias fornecem novas informaçoes que nao estavam disponíveis vinte anos atrás. O sol faz a cidadela aparecer diante de nossos olhos com todo seu esplendor e magnitude. A paisagem mudou, mas meus olhos mudaram muito mais. Termino a visita e me despeço dos demais, que ainda vao aproveitar as horas restantes, pois eles tomam o trem para Cuzco ainda hoje. Eu vou ficar mais um dia e reingressar amanha.
Carimbo meu passaporte, como manda a tradiçao.
Pego o microonibus - todos brasileiros, da Marcopolo - que agora sao muito melhores que vinte e tantos anos atrás. E os motoristas sao muito mais responsáveis. A estradinha já tem até guard-rail. E o garoto que gritava good bye atrás do ônibus nao existe mais. Cresceu. E a prática foi proibida pelas autoridades.
Meio dia chego no Hotel Presidente, que era um hostal e foi promovido. Me despeço de Gerson.
Águas Calientes está irreconhecível. Isto aqui é uma outra esquina do mundo. Um cosmopolita pueblo de trezentos habitantes que recebe mais de três mil visitantes ao dia. É uma mistura de Bariloche com Cartagena, Quartier Latin (Rue de L´Harpe), Montmartre e Cancún. A estrada de ferro espreme uma parte do pueblo contra o Urubamba e outra parte contra a montanha. O pueblo cresce ao longo da ferrovia. Meu quarto - com uma exagerada cama king size - tem vestíbulo e uma sacada para o furioso Urubamba que me deixa cara a cara com duas montanhas.
Depois de me acomodar e tomar um banho quente, checo a pressao, que agora está muito abaixo do normal. Menos mal, penso.
Entrego minhas roupas para lavar e vou procurar o restaurante Índio Feliz, indicado pelos guias e por Maurício, da Pisa Trekking.
O Índio Feliz na verdade é um bistrô, bar e creperie escondido em uma ladeira que começa na Plaza de Armas. Um casal francês criou aqui um improvável bistrô com decoraçao carregada, em tons rosas e de madeira natural. O bar é o capitain bar e por isso tem vigias na decoraçao. Por razao desconhecida, no teto tem rodas de carroças, em um estranho diálogo com os motivos náuticos do bar. Uma escultura do que parece ser uma carranca também sugere a proa de um barco antigo. No balcao do bar reproduçoes de gravuras antigas, dos tempos dos descobrimentos. Cartoes de visita forram o teto de madeira de um dos saloes, onde estao pendurados alguns bonés de clientes esquecidos. Sou atendido pelo dono e pela dona, sucessivamente.
Peço um Pisco Sour enquanto decido o que vou escolher.
Sigo as sugestoes da dona do bistrô e peço de entrada um melón trujillano e nao me arrependo. É uma combinaçao de melao cortado em bolhinhas com um molho adocicado e mentolado, enfeitado com tiras de laranja e melancia, temperado com umas folhas de salsa e cebolinha. O efeito é inusitado e inesquecível.
O prato principal é truta al macho, com um molho levemente picante e azedinho (limao). A combinaçao com o Pisco Sour é matadora. Este prato e este bistrô fariam bonito em qualquer lugar nenhum do mundo e se seus donos colocarem uma filial no Quartier Latin ela vai tomar a clientela de muitos dos que hoje fazem sucesso por ali. O Índio Feliz é o melhor restaurante de Águas Calientes. Palavra. Ah, sim. O preço está na marca: o equivalente a 50 reais, com a gorjeta.
Depois do almoço sou descoberto por um simpático casal brasileiro da mesa ao lado. Fui denunciado pelo sotaque e pela sandália havaiana.
A noite procuro outro restaurante nesta mesma ladeira. Escolho o Inka Wasi e nao me arrependo. Tem também uma decoraçao carregada, uma espécie de country peruano, e uma lareira que esquenta a alma. O pao de alho é excelente. O abacate ao vinagrete foi uma boa pedida. E o filet mignon nao decepcionou. Com a torta de chololate e o chá, ficou tudo pelo equivalente a 27 reais. Nada mau.
Nunca na minha vida comecei e terminei um dia assim tao diferente, em extremos tao opostos.
Agora é dormir sob o hipnótico marulhar do Urubamba, que passa pela porta e janela de vidro grosso do meu quarto.
Valeu a pena. E minha alma ficou maior.
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