Notícias do Solimões
11 de dezembro de 2009, sexta-feira.
Acordo cedo e espero pelo taxista que havia contratado. Descubro que estou trancado na hospedage. Como o taxista esqueceu do compromisso, tomo a providência de acordar meu vizinho e perguntar como fazer para conseguir abrir o portão. Ela me aponta o lugar onde dorme o gerente, que acorda e ainda estremunhado abre o portão e chama um táxi. Antes que complete o chamado passa um que resolvo tomar logo, para cumprir o horário.
O barco rápido Puma já está recebendo os passageiros.
Desço pelas escadas e alcanço o porto flutuante sobre uma prancha de madeira larga o bastante para permitir caminhar com segurança carregando mala e duas mochilas.
A tripulação é uniformizada com camisas polo onde destacam que pertencem à marinha mercante. A bagagem é recebida e etiquetada como nos aeroportos. Esclarecem que depois baixarão ao porão as bagagens, que provisoriamente ficam sobre a cobertura. O barco também é de duralumínio, impulsionado por dois potentes e afinados motores Yanmar, que não engasgaram nada em trinta e seis horas de viagem. O tanque de combustível também fica no porão. Mas aqui não tem aquele papo de aeromoça e os coletes salva-vidas ficam espremidos em um compartimento sobre as cadeiras duplas, parecidas com as de ônibus, não reclináveis (as do Golfinho eram reclináveis, da Marcopolo). Não tem lugares marcados. Mas depois de escolher um na janela da segunda fila, sou esclarecido que aqueles estão reservados. Depois descubro para quem: para militares, que aqui tem muito prestígio.
Troco de lugar. Quando começa a lotar, uma cunhã-poranga escolhe sentar do meu lado. Inquieta e falante.
Com algum atraso o barco parte, mas apenas para atracar em outro porto, onde a Polícia Federal passa um pente fino. Desembarcamos todos com nossas bagagens de mão. Uma cadela inspeciona nossas bagagens. Uma revista mais ou menos rigorosa. Estrangeiros provocam mais cuidados. O delegado dá conselhos para uns gringos que vão para S. Paulo. Crianças e adolescentes desacompanhados são desembarcados. Uma gringa abraça um chegante e logo ficamos sabendo que outro gringo, com problemas de saúde mental ou dependente químico, se atirara ao rio no dia anterior e depois aparecera no hospital local. Mas até isso acontecer aporrinhara a vida do chegante, que era o comandante do barco que perdera um dia de viagem com a brincadeira, que mobilizara a embaixada norte-americana e a Capitania dos Portos. Um dos militares recomenda umas porradas para colocar os parafusos dele no lugar. A gringa tenta abraçar uma outra passageira que acompanhava outro militar e é repelida com grosseria e fica repetindo ais meus deus com um sotaque engraçado. Uma hora depois somos liberados para partir.
A cunhã-poranga me informa que pegaram uma mulher que havia escondido algumas gramas de pasta básica em um brinquedo do filho, que se assustou, chorou e chamou a atenção dos policiais. Sinceramente, não percebi. Mas parecia ser verdade. Ela diz-se aliviada porque também é adolescente, tem apenas dezesseis anos. Mas já é casada e vive em Coari. Explico que com o casamento ela emancipou-se, mas até agora duvido muito que ela tenha compreendido a explicação. Inquieta, passa para a cadeira da frente, que estava desocupada no momento. Na primeira parada, em Benjamim Constant, foi obrigada a aceitar a companhia de outro passageiro.
Perto das onze horas atracamos em uma delegacia fluvial, para controle dos passageiros embarcados em Benjamim Constant. Duvido muito do método de controle, mas reconheço que é melhor que nada.
A paisagem do Solimões, que acompanho pelo binóculo, é um pouco diferente. Ainda tem muitas embaubeiras, mas começam a aparecer barrancos altos, verdadeiras falésias fluviais. Os troncos e galhadas diminuem. Não dá para perceber alargamento do rio porque navega-se mas pelos braços que pelo curso principal. Aqui as ilhas se formam e desaparecem ao sabor das enchentes e vazantes. A velocidade do barco está sempre acima de 30 milhas por hora. O sonar mostra onde está o canal, que agora na vazante está sempre acima de 10 metros de profundidade. Um GPS ajuda o piloto, um jovem que parece não dormir nunca e esquiva-se dos troncos com habilidade.
O almoço vem em um bandejão. Carne assada, preparada em uma microscópica cozinha. Outra vez a comida de barco deixa no chinelo a de avião. Mas a melhor fica mesmo para a tripulação, que depois de atender todo mundo vai de saia velha, que parece melhor ainda.
Entre 13 e 14 horas passamos por S. Paulo de Olivença. Aqui o transporte escolar é feito em barcos e a julgar pela quantidade deles ao longo do Solimões, parece que as crianças estão bem atendidas.
Depois das três da tarde passamos por Amaturá, tocando no porto o tempo suficiente apenas para deixar e receber passageiros, o que é feito com calma rapidez.
Antes das quatro e meia da tarde estamos em Santo Antônio do Içá. Daqui em diante começo a notar a presença da pecuária nas margens do Solimões.
Mais ou menos às 17:30 horas passamos por Tonatins. Via de regra as cidades e vilas do Solimões são antigas e suas áreas correspondem aos vales dos afluentes (como acontecia no Pará antes da chegada da Estrada de Ferro de Bragança e das rodovias).
Uma chuva fraca não parece preocupar ninguém, embora tenha encrespado um pouco o Solimões.
O jantar é um bem temperado bife de panela, como sempre melhor que comida de avião.
Antes das nove da noite estamos em Jutaí.
Minha leitura do diário de Wallace vai adiantada e resolvo apagar a lanterna, colocar o tapa-olho e dormir. Sou bom nisso. O ruído dos motores tem efeito hipnótico e durmo assim meio lá meio cá, acordando mesmo apenas nos locais onde o barco deixa e recebe passageiros. Perdi a noção de por onde passamos durante a noite.
Pela manhã, uma bela combinação de nuvens escuras e alvorada vermelha, logo substituída pelo dourado forte do sol amazônico. Descuidado, havia queimado os dois braços entre Iquitos e Santa Rosa. Agora o sol fica à vante ou à ré, e sou poupado.
No sábado a paisagem do Solimões mudou e as embaubeiras ficam raras. Os barrancos são mais frequentes e as praias aparecem em grande quantidade e extensão. Dizem que a cheia está demorando este ano, por conta do El Niño.
Nove e meia da manhã, com mais de duas horas de atraso, chegamos a Coari. A cunhã-poranga, que passara a noite cochilando no ombro do seu vizinho, despede-se com monumental preguiça. Coari tem um porto flutuante muito bom e os efeitos da exploração do gás estão a vista. Um belo iate está fundeado bem na barra do porto. Um helicóptero volteia com elegância em direção de Urucu. A propósito, o Amazonas tem mesmo mais sorte que o Pará, pois o gás nele produzido é pelo menos em boa parte destinado ao mercado interno e tem tudo para gerar efeitos dentro do próprio estado. Já com nossos minérios o Pará não tem a mesma sorte.
Hoje o almoço é pirarucu desfiado, no ponto exato de sal para meu gosto de hipertenso. Comida simples, boa e sem frescuras. Melhor que de avião, sempre.
Depois do meio-dia estamos em Codajás. Não sei como é hoje, mas quando estudava Geografia no Primário éramos obrigados a decorar os nomes dos Municípios das margens esquerda e direita do Solimões e Amazonas. De Codajás lembro bem.
O movimento fluviário aumenta e denuncia que estamos perto de Manaus.
No final da tarde passamos por Manacapuru. Logo cruzamos com o luxuoso Iberostar, que não inveja nenhum desses transatlânticos que ziguezagueiam pelo Caribe.
Quando já escurece, avistamos Manaus, com seus edifícios, navios, portos e refinaria.
O porto flutuante da Puma é grande o suficiente para receber duas embarcações simultaneamente. As malas são entregues em uma mesa comprida, de aço inox, que faz as vezes de esteira. Recebo em ordem minha bagagem. Recuso carregadores e taxistas, resolvendo caminhar até o terminal hidroviário, alguns metros adiante. Quase me arrependo. Não tanto pela subida, mas por não ter calçadas para caminhar. Elas estão tomadas de camelôs e barracas que vendem bebidas e fazem barulho, a pretexto de fazer música. E no terminal propriamente dito ainda tive que subir uma rampa que atravessa uma rua a uns seis metros de altura.
O terminal é melhor que um embarcadouro. Mas Paulo Chaves não assinaria esta obra, que já tem sete anos e é popularíssima. Os bares estão lotados. A música é um pouco mais baixa. Procuro os guichês de informação e antes de chegar neles um guarda me informa que os barcos para Belém só saem quarta-feira. Ficar de sábado a quarta-feira em Manaus me desanima o bastante para terminar aqui a descida do rio. Menos mal que assim tenho pretexto para fazer outro percurso, agora saindo do Peru por Puerto Maldonado e entrando no Brasil por Assis Brasil, depois Rio Branco e Porto Velho, daí descendo o Madeira até Manaus e daí até Belém. Coisa para daqui a uns dois anos, quando voltar ao Peru para fazer a Trilha Salcantay.
Tomo uma cerveja em um dos bares e dali mesmo reservo o Hotel Ibis. No táxi fico sabendo que talvez no domingo saia um barco para Santarém e daí poderia tomar outro barco para Belém. Mas meus planos agora já são outros. Compro uma passagem aérea pela Internet para o dia seguinte, domingo.
No caminho constato outra vez que o sítio urbano de Manaus está muito melhor cuidado que o de Belém. Basta comparar a quantidade de elevados. Em Manaus está chegando a dez, Belém tem dois e meio.
Logo logo não é só Manaus que vai estar melhor que Belém, é o Amazonas inteiro.
O que parecia ser uma loucura, a concentração da população do Estado em Manaus, revelou-se uma solução. Artificial, é verdade, porque baseada exclusivamente no sucesso do Polo Industrial. O fracasso dele é o fim de Manaus. Por isso todos, mas todos mesmo, defendem a SUFRAMA, que de zona franca tem só o nome, pois o que deu certo mesmo foi o Polo Industrial. Agora o Amazonas aposta todas as suas fichas no turismo e isso explica seu empenho pela Copa do Mundo, merecidamente bem sucedido. Temem depender apenas do Polo Industrial.
Graças a essa escolha pública do Estado do Amazonas, com apoio da União, a pressão sobre a floresta amazônica no Amazonas é mínima, e o governo do estado consegue atender minimamente a escassa população dos demais municípios. É modelo que não pode ser copiado em nenhum outro estado amazônico, mas nos obriga a pensar. Pelo menos isso.
Ponho um ponto final nesta imersão profunda nesta parte da nuestra América.
Volto menos americano do que parti. E menos latino.
E com a certeza de que temos de mudar nosso estilo de vida dito civilizado.
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