Crônica de Uma Fome
Uma Broca é Uma Broca
Octavio Pessoa Ferreira*
“Realmente. A fome simplifica as pessoas”, afirmou Nélida Pinon ao cronista Bob Menezes, numa prosa entre eles. Bob refletiu durante dias sobre essa afirmação da intelectual e mais adiante, constatou que as palavras também se aplicam a outros tipos de fome.
O cronista conta que dias após a conversa, uma amiga dele confidenciou-lhe que, depois de um casamento de mais de trinta anos, cercado de muito conforto e lugares requintados, realizou o antigo sonho de aprender a dançar. Formou um grupo de amigas com o mesmo interesse e a experiência foi tão boa, que foram descendo o nível de ambientes e de acompanhantes. Nos lugares mais populares, os cavalheiros, ao perceberem que estavam diante de “gente fina”, maneiravam nos passos, nas viradas e nas pegadas. Numa noitada dessas, a carente madame pediu ao parceiro que deixasse de lado os cuidados excessivos e fosse mais viril. Conclui Bob, esse tipo de fome também simplifica as pessoas.
Já vivi uma situação limite que foi a minha prova dos nove de que a fome é, sem dúvida nenhuma, o melhor tempero para a comida e que ela coloca todas as pessoas num mesmo plano. Foi quando eu construía a casa que tive em Algodoal, ilha oceânica que se alcança através de Marudá, distrito de Marapanim, no estado do Pará. Casa simples, mas, como diz Vinícius, feita com muito esmero. Até catavento e geladeira a gás eu coloquei nela, quando ainda não havia energia elétrica na ilha.
Durante a fase de construção, fiz a travessia de Marudá para Algodoal, de todas as maneiras que se possa imaginar. Até na maré lançante, às seis horas da tarde, com vento forte, eu atravessei para a ilha, levando material de construção.
Certe feita, após a última “carroçada” levando material do porto para a obra, às três horas da manhã, eu simplesmente desmaiei nas areias da colônia de pescadores, que é o porto da ilha. Fui acordado pelo sol.
Detonei aquela hora da manhã, uma rabada que era destinada ao almoço. Ao chegar em casa, entreguei à mulher do caseiro, como eu sempre fazia, carne de sol, linguiça e assemelhados, que sempre levava para os nativos mais chegados a mim. E, como de praxe, pedi ao Visagem- imagine a figura- para ir pro mangal, apanhar caranguejo para o almoço. O finado Visagem era o melhor tirador de caranguejo de Algodoal. Sua única exigência era ser anestesiado. O que significava consumir meia garrafa de Velho Barreiro, antes de se internar no mangue. A outra metade ele bebia na volta. Aí ele “chinava” até à noite, quando ia tocar atabaque nas rodas de carimbó, da praia da Princesa. Era uma curtição.
Só que, dessa vez, eu recebi daquele homem rude que certamente, nunca ouvira falar na palavra ecologia, uma grande lição de preocupação ecológica. Ele se desculpou, mas disse que não iria tirar caranguejo, porque “é época dos bichinhos se reproduzirem”. Eu desconhecia até então, que era época da “andada” dos caranguejos ou sauatá, quando os caranguejos podem ser vistos saindo de suas tocas para copularem e em que também, muitas fêmeas são observadas subindo nas raízes para extrusão dos ovos. Concordei imediatamente com o Visagem. Vamos todos comer o que eu trouxe de Belém, decidi.
O caseiro e seus filhos, vizinhos, operários, muita gente, no dia seguinte não havia mais nada. E não havia peixe na ilha. Os nativos respondiam que todos os pescadores estavam pro mar. Peixe, só daí a quatro dias. Comprei a última lata de carne viandada, da única mercearia que dispunha do produto, que foi destinada às crianças do caseiro. Que situação! Eu com fome, com dinheiro no bolso e sem poder comprar nada, porque nada havia para se comprar.
O único barco atracado na ilha, estava “no prego”. Foi um dia e uma noite sem ingerir qualquer alimento. No dia seguinte, peguei o primeiro barco que fez a travessia de Algodoal para Marudá. Fiz toda travessia em silêncio. Não era meditação ou qualquer outra coisa parecida. Era receio de indigestão, caso eu engolisse vento.
Chegando em Marudá, de longe avistei, na prateleira do bar Maré Braba, que fica nas palafitas do cais do porto, um pacote de bolacha Maria. Pedi o biscoito e com sofreguidão o detonei, regado a guaraná Garoto. Não sei em quantos segundos consumi aquele verdadeiro “manjar dos deuses”, na situação em que me encontrava. O vendedor que acompanhava atentamente aquela minha “degustação” relâmpago, ao receber o pagamento, me encarou e fez a observação: - “Doutor, uma broca é uma broca, não é?”. É verdade, consenti sorrindo.
Ao ler a crônica de Bob Menezes, foi inevitável lembrar-me dessa passagem da minha vida. E faço coro com Nélida Pinon e o cronista. Realmente, a fome simplifica as pessoas. Ou como se diz na linguagem popular, “uma broca é uma broca”.
*Jornalista, advogado e auditor federal de controle externo.
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