Notícias da Trilha Inca (3)
29 de novembro de 2009, domingo.
Neste terceiro dia, depois de dormir melhor, desperto cinco horas da manha com o alarme do IPhone, antes do porteador passar com o chá de coca e a senha matinal. Acendo a lanterna - dessas que ficam presas na testa, como de quase todos os trilheiros - mas vejo que o dia já está claro. Meço a pressao arterial, que continua alta, mas ainda assim mais baixa que ontem. Desconto porque o aparelho portátil é descalibrado. E desencano.
Antes das seis já estávamos todos na barraca maior para o desayuno: pao, geléia de morango, chocolate e chás. Mas o cozinheiro fez uma supresa: um bolo confeitado, para comemorar o sucesso de ontem. Começamos bem o dia. Animados para enfrentar mais uma subida até outro paso, um pouco mais abaixo que o de ontem.
Largamos Pacaymayo para trás, descemos um pouco. O início é ondulado, mas logo começamos a subir e uns quinze minutos antes das oito horas já estamos em Runturakay, a 3.800 m sobre o nível do mar. Já estou mais adaptado a altitude, mas ainda assim é uma canseira. O bastao é minha terceira perna e faz milagres. Caminho como um anciao, devagar, mas sem parar. Se parar é pior. A paisagem é estonteante, apesar da chuva que nos acompanha intermitantemente. O esforço aumenta a temperatura e sempre que podemos nos livramos das camadas: primeiro o poncho (brasileiro, mas eficaz), depois o anorak (a The North Face sabe das coisas e este último modelo é muito bom mesmo), depois o fleece até ficar com uma camiseta de manga comprida(protege contra os raios ultravioletas e tem um buraco para passar o polegar, evitando queimar a costa das maos) sobre outra de manga curta. Quando a chuva volta, recomponho camada por camada. Caminhamos acima das nuvens outra vez. É uma sensaçao única, indescritível. Visto assim na vertical, o mundo é outro. A acrofobia desapareceu definitivamente. Subimos mais um pouco até chegar ao paso: 3.950 m sobre o nível do mar. Atingimos o paso pouco antes das nove horas da manha. Mais uma etapa dura fora vencida (yes, we can). A beleza vista do alto compensa o esforço. O cansaço desaparece como que por encanto e a sensaçao é próxima da euforia. Deve ser o efeito das endorfinas. O guia nos dá mais explicaçoes sobre as ruínas de Runturakay (veja aqui uma foto de outro trilheiro em um dia parecido como este).
Alegres, iniciamos a descida do outro lado da montanha. Depois das nove e meia desta manha de domingo - lembro agora, mas no Caminho isso nao fazia a menor diferença - estamos em Sayacmarka, a 3.625 m sobre o nível do mar. Mais explicaçoes do guia, enquanto descansamos. Aqui tem uma foto de outro trilheiro. Passados esses anos todos, temos que nos curvar, respeitosamente, ante os incas. Simplesmente nao existe nada igual no mundo. O domínio da técnica da cantaria, mesmo nas construçoes mais simples, é impressionante.
Prosseguimos a caminhada. Baixando sempre. Agora a força da gravidade ajuda, mas tenho que ficar sempre atento, pois a chuva deixa as pedras resvaladiças. Por volta de onze horas chegamos a Chakicocha (laguna seca, em quechua), onde já encontramos o acampamento armado para o almoço. Hoje o almoço é mais cedo e o cozinheiro caprichou outra vez: salpicao de frango, quinoto, salada, purê de batata e macarrao, com mazamora morada e o tradicional chá na sobremesa. O chá de coca é fundamental para manter os pulmoes bem abertos. Aqui cada nesguinha de oxigênio é valorizada. Os porteadores preferem mascar diretamente as folhas. Uma hora depois já estamos de volta ao Camino.
Voltamos a subir. O ritmo cai. O esforço aumenta. A respiraçao fica difícil, mas nada comparado com os dois anteriores. Pouco antes das duas da tarde chegamos a Puyupatamarca, a 3.640 m sobre o nível do mar. Descansamos enquanto o guia Gerson nos dá novas explicaçoes sobre as ruínas.
Revigorados, retomamos a caminhada, baixando. Outra vez a gravidade atua positivamente. A paisagem é linda e misteriosa, coberta de névoa e nuvens. O cuidado nao impede fruir a beleza da paisagem. Pouco depois das quatro da tarde chegamos a Winayhuayna, onde todos os grupos acampam para pernoitar. Estamos perto de Machu Picchu. Terminamos o domingo em um lugar onde tem ducha quente e toalhas para alugar (algo como sete reais). Depois de encarar uma fila para tomar banho quente, desisto de visitar outras ruínas perto daqui para nao atrapalhar o grupo. Compro cervejas e fico bebendo com o porteador que auxilia o cozinheiro. O entardercer traz a lua quase cheia sobre o vale do Urubamba, que ruge lá em baixo. Uma torre e os fios de alta tensao da hidrelétrica enfeiam a paisagem. Mas a lua quase cheia é simplesmente maravilhosa. Pelo binóculo vejo dois glaciares no topo das montadas do outro lado do vale. E fico ali até acabar a luz do dia e os demais voltarem da visita. Hoje o chá da tarde (com pipocas, pastéis, bolachas água e sal, fajitas, café e chocolate) emendou com o jantar.
O jantar é uma babel bem organizada. Cada grupo coloniza as mesas do lugar e faz sua festa. A confraternizaçao é geral. Tem bolo de aniversário na mesa do lado. A salsa corre solta. Este acampamamento tem fama de barulhento. Merecidamente. Uns jogam cartas. Outros tagarelam. Nós aproveitamos para acertar as gorjetas para os porteadores, cozinheiro e guia. O último jantar foi salada, espaguete, arroz, frango, pimentoes recheados, macacheira, sobremesa e chás.
Terminado o jantar cumprimos o ritual de despedida dos porteadores, que amanha partem muito cedo e nao nos encontraremos mais. Eles deixam as mochilas em Águas Calientes e pegam o primeiro trem para Cuzco. Cada um de nós agradece ao guia, aos porteadores e ao cozinheiro, que escolhe um dos porteadores para retribuir em nome de todos. Entregamos as gorjetas e nos despedimos.
Vou logo dormir porque amanha acordaremos antes das quatro.
O cansaço traz o sono que vence a ansiedade que vai chegar com o amanhecer.
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