Notícias do Caminho - de Astorga a Foncebadón

7 de maio de 2010, sexta-feira. Acordei bem. Consegui até fazer mais ou menos, espremido no beliche, meus exercícios diários de Yoga que Aracele me ensinou. Estou com fome, o que é bom sinal. Comi de tudo o que havíamos comprado na véspera e ainda encarei um chá de menta que encontrei na cozinha no albergue. Este albergue de Astorga e seu hospitaleiro eram tudo o que me faltavam para trazer-me a saúde de volta. As dores nos pés desapareceram. Alfredo Manuel aparece para dar bom dia e desejar bom Caminho. Aproveito para agradecer e me despedir. Nunca irei esquecer a cara alegre e simpática deste português de Viseu. A alvorada no albergue é ao som de canto coral da melhor qualidade. Na saída a Ave Maria se derramava para as ruas e invadia o frio.
Passo de novo pelo Palácio Gaudi, o Palácio Episcopal que agora é o Museu dos Caminhos. Ofuscada pelas grandes obras desse genial filho de Astorga, nao se conhece muito esta obra. Mas aqui estao todos os elementos que mais tarde tornariam famoso Gaudi. É, bem comparando, a Pampulha de Gaudi. Ao lado a magnífica Catedral, com suas torres de cores diferentes. Um dia voltarei aqui para ver com muita calma, tempo e paz estas duas magníficas obras. E, claro, para comer o cocido maragato.
O frio de oito graus me fazem voltar as dores reflexas e tento me entender com meus bicos de papagaio. Logo passo pela Ermida Ecce Homo, onde em 2007 eu e Araceli lanchamos antes de seguir caminho (está relatado aqui mesmo no blog em um longo post). Atravesso a rodovia e decido seguir pela ponte sobre o Rio Jerga. Um galego corrigiu com spray: Riu Xerga. Daqui por diante vai ser assim: as placas vao ser corrigidas para que o galego seja reconhecido como língua oficial desta regiao. Na Espanha unificada tem disso. Sem contar que León quer se separar de Castilla.
Logo chego a Murias de Rechivaldo, quase cinco quilômetros adiante. As dores continuam mas vou controlando. Tenho que apertar o passo e contrair a musculatura do abdomen para aquecer e controlar a dor. Vejo que vem chuva na minha rota.
Agora acabou a planura castelhana e começo a subida dos montes de León, suavemente, rumo ao ponto culminante, a Cruz de Fierro, onde chegarei só amanha cedo.
Saio da trilha para o andadero rente à rodovia. Pouco depois das nove da manha estou em Santa Catalina de Somoza e começa a chuviscar. Sabendo que agora vai chover mesmo, ponho o anorak e o poncho e assim resolvo dois problemas: nao me molho e ainda me aqueço o bastante para controlar definitivamente as dores reflexas. Fica também a impressao que o ajuste da mochila estava me prejudicando. Às vezes uma tira mal apertada ou uma regulagem mal feita provoca dores nos lugares mais insuspeitos. Uma dobra de meia pode provocar uma dolorosa bolha ou uma dor no calcanhar. Coisas do Caminho.
A chuva é o suficiente para molhar a capa e a bota, nada mais. Menos mau. A paisagem agora é outra. Os montes ao longe desapareceram na minha frente, mas para os lados consigo ver moinhos de vento quase na linha do horizonte. E a pergunta que me martela desde Navarra: por que no Brasil nao há aproveitamento da energia eólica para gerar eletricidade? Para mim é estranho. Ou estes espanhóis - e alemaes - sao uns idiotas em usar energia eólica, ou os idiotas somos nós, brasileiros. Um dia a história irá escolher quem foi idiota.
Pouco depois das dez da manha chego ao El Ganso, um desses povoados que tinha praticamente desaparecido e agora vive do e para o Caminho. É hora de parar para um café e para alongar, pois já caminho deste sete da manha. Entro no mesón Cowboy e sou atendido por Ramiro, que maneja a cafereira e os copos com a rapidez de um pistoleiro do Velho Oeste. Enquanto atende vai distribuindo bom-humor a raudales como se diz por aqui. Para cada um tem uma frase bem-humorada e assim o mesón vai enchendo de peregrinos, a pé e de bicicleta. Logo a babel está recomposta e organizada, em todas as línguas, e Ramiro disparando rajadas de café e bom-humor. Agora sei que estou definitivamente curado. E Paco Nadal precisa descobrir Ramiro para colocar na próxima ediçao de seu guia. A alegria dos peregrinos quando saem do mesó é visível e indizível. Agora estou completamente curado, do corpo e da alma. E marcho sob a chuva fina para Rabanal del Camino, sete quilômetros mais adiante e mais de 1.100 m sobre o nível do mar. Subida suave sob a chuva fina e sem dor, é quase um barato. Pouco depois de meio-dia estou em Rabanal. É impressionante o que aconteceu aqui. Já foi muito importante nos tempos medievais, mas estava abandonada. Agora, Rabanal recebeu um sopro de vida graças a enxurrada de peregrinos modernos. Sao tantos os alberques que no guia é final de etapa. Em 2007 eu e Araceli conseguimos a façanha de caminhar de Puente e Hospital de Órbigo até aqui. Ficamos no albergue El Tesin. Agora vou passar mais adiante, rumo a Foncebadón, sempre subindo e com a chuva passando. Agora caminho por um distrito florestal. Sao pinhais e carvalhais. Os carvalhos perderam as folhas - que agora atapetam o chao - e ainda nao ganharam novas folhas. É uma paisagem diferente, um tanto inquietante. Os carvalhos sao jovens e parecem árvores da caatinga brasileira nesta época do ano. Aqui e acolá uma fonte para os animais e o aviso para os humanos: água nao potável.
Finalmente, pouco depois de uma da tarde chego à Foncebadón, já sem chuva alguma, mas com frio. Esta é outra cidadezinha medival ressuscitada pelos peregrinos modernos. Vou direto para o albergue Convento. Aqui Way is business. Em minutos o albergue lota. Tive que pagar antecipadamente pela cama de meu amigo peregrino de Belém.
Me instalo e logo ele chega, trazido por Sérgio, que o resgadou no meio do vilarejo.
Resolvemos almoçar em um restaurante especializado em cozinha medieval, La Taberna de Gaia (www.latabernadegaia.com). Está instalado em uma das muitas ruínas daqui. Agora é um perfeito restaurante medieval. Seu dono é um gigante vestido mais ou menos como se fosse o Obelix. As meseras se vestem como se estivessem mesmo na Idade Média. A comida é boa e o preço salgado, para o gosto de um peregrino. Comemos sopa de truta, legumes com ovos mexidos, um churrasco de ternera (me pareceu um corte de peito de boi, mas macio) e ciervo estofado.Foram 38 euros para duas pessoas. Mas a verdade é que cada prato serve duas pessoas muito bem e foi isso o que fizeram amigos peregrinos que chegaram depois de nós. O dono faz uma longa peroraçao sobre Gaia aos nossos amigos, que entram no clima. Valeu. Até porque serviu para provar que com a fome voltou definitivamente a saúde.
Amanha vou cedo depositar as pedras que trouxe de Belém no secular milladoiro da Cruz de Fierro, e pedir proteçao para Araceli, Stella e Clarisse, nossas netas, que terao também um bom caminho da vida.

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