Notícias do Caminho - de Foncebadón a Ponferrada

8 de maio de 2010, sábado. Acordo cedo, como de rotina, ao som do IPhone, o melhor amigo do peregrino pós-moderno. Ajuda como despertador, agenda, bússola, relógio e funciona até como telefone. Encontro Sérgio e agora é minha vez de ajudá-lo com antidiarréicos. Tomamos café no albergue e saímos mais ou menos as sete da manha, sob frio e chuva fina, bem guardados sob três camadas de roupas, anorak e capa de chuva. Tem neblina e isso aumenta o jeitao fantasmagórico das ruínas de Foncebadón. Subo pela trilha encharcada e logo reaparecem as dores amigas e benignas, menos incômodas que antes. Umas fisgadas no ombro esquerdo que nao chegam a comprometer a paisagem e a caminhada. Coisa pouca. A verdade é que estou ansioso para vencer os poucos metros montanha acima que me separam da Cruz de Fierro, onde chego meia hora depois. A rodovia que passa junto nao compoe bem o cenário secular deste cruzeiro, mas hoje o mastro com a cruz de ferro perdida na ponta está diferente. Parece uma fantasmagoria milenarista. O milladoiro - monte de pedras que os peregrinos vao fazendo ao longo dos séculos - já tem lá seus quatro cinco metros. Estamos a mais ou menos 1500 m sobre o nível do mar. Nicholas, peregrino americano vai na minha frente e deposita sua pedra. Faço a foto dele. A minha faz meu amigo peregrino de Belém. Retiro as três pedras que trouxe de casa - uma para Araceli, outra para Stela e outra para Clarisse, que receberao parte das energias positivas desta obrigaçao e deste Ano Xacobeo - e deposito primeiro em uma mao e depois, com muito cuidado, sobre uma pedra maior, rente ao mastro. Este ritual acalentado nos últimos três anos gera energias que atravessaram o Atlântico e chegarao às destinatárias, que ainda dormem agora. Chove e faz frio. O mastro tem de tudo em matéria de ex-votos. Este ano até uma bota foi pregada nele. Os peregrinos estao abrigados na área coberta de apoio ao secular monumento. Desço pelo lado oposto e sigo meu Caminho, agora rumo a Manjarin, um pouco mais abaixo.
Pouco depois das oito da manha chego ao reduto de Tomás de Manjarin, que antes eram ruínas e agora é um albergue para 14 pessoas. Sou recebido por Paco e logo aparece Tomás de Manjarin, que hoje está tocando o sino porque tem névoa e os peregrinos podem se perder. Tomás recuperou Manjarin para o Caminho e e espírito templário preside este lugar. Música celta enche o ambiente. Bandeiras de todos os países - Brasil inclusive - deixam claro a natureza universal deste alberque único (e controvertido). Tomo um café com bolacha maria e noto que a garrafa térmica e a vasilha das bolachas aumentou pelo menos o triplo em três anos, do que deduzo o crescimento dos visitantes. Deixo o donativo que ajuda a manter este lugar mágico. Faço uma foto com Tomás e dele recebo a sugestao para sair pela rodovia a direita de Molinaseca, para encurtar caminho até Ponferrada. Vou seguir esse conselho, pois a volta é grande e nao se trata da rota original. Despeço-me com gratidao. As dores desapareceram por encanto. E o sol ameaça dar as caras. A chuva, as brumas, a neblina dao um colorido diferente aos montes de León. Vejo ao longe que tem neve fresca nos cumes das montanhas. E estamos em plena primavera.
Antes das dez da manha estou em El Acebo, uma dessas fantásticas cidades medievais que renasceram com o Caminho. As casas sao cobertas de ardósia negra, o que nao chega a ser um luxo por aqui, onde ela é abundante. No caminho há um milladoiro de uns dois metros de altura, piramidal, feito de pedaços de ardósia cuidadosamente empilhados. É a arte do Caminho. E o Caminho está cheio de manifestaçoes artísticas assim. As flores estao por toda parte. As nuvens estao um pouco abaixo de nós e seguimos baixando. A rodovia serpenteia e por elas passam os ciclistas (hoje e amanha é dia deles) e alguns peregrinos. Um vilarejo medieval perdido nos montes aparece ao longe. Nao dá para ver por onde se chega nele.
Antes de onze da manha estou em Riego de Abrós, com suas casas cobertas de ardósia negra. O sol reaparece e agora na ponta de cada tufo de grama destes campos de altitude tem um diamante com todas as cores do arco-íris. É um dos espetáculos mais belos do Caminho, que observo pela primeira vez. O Caminho é um Rio de Heráclito a cada momento. Nunca se faz o Caminho mais de uma vez. Ele muda sempre. Esta beleza eu nunca tinha visto na vida, gotículas de orvalho que refratam a luz solar e constróem milhoes desses diamantes irisados de todas as cores do espectro. Um espetáculo, pura e simplesmente. Máquinas fotográficas comuns nao captam essa beleza. A minha pelo menos nao captou. O que é irrelevante, porque minha retina captou e meu cerébro gravou para sempre. Com o sol agora chegam os pássaros, milhares deles, cada um com seu canto e sua sagraçao da primavera.
A chuva vai e vem caprichosamente, me obrigando a manejar o anorak e a capa. Antes das dez avisto Ponferrada ao longe e sei que no meio ainda tem Molinaseca e Campo. A trilha é um sobe e desce sem fim, e está resvaladiça. Caí pela primeira vez. A mochila amorteceu a queda. Meu amigo me ajuda a levantar e seguimos em frente. Encontramos peregrinos que voltam de Santiago. Topamos com um bem nutrido rebanho de ovelhas com muitos chocalhos e um só cao pastor dominando tudo com um simples olhar. Autoridade é isso aí. Ervas aromáticas estao em flor. Uma delas parece alfazema, outra lavanda. Nao encontrei romero (alecrim) ou tomilho por aqui. Pouco depois de meio dia estou na rodovia que vai me deixar exatamente na ponte de pedra de Molinaseca, sobre a qual transpomos o Rio Maruelo. Junto a ponte, um totem faz propaganda dos produtos do Bierzo: botillo, pera, uva, vinho (da varietal Mencia), pimentao. Três anos atrás esse cartaz só existia em Villafranca del Bierzo e a luta pela Denominaçao de Origem Controlada - D.O.C desses produtos estava chegando no final. Agora é realidade. Coisa para nossos produtores aprenderem logo, como sempre lembro aqui. Imagino uma farinha dágua de Bragança D.O.C. Por falar nisso, tapioca D.O.C. é uma outra boa idéia, pois a Royal já vende tapioca em caixinhas nos supermercados daqui da Espanha.
Molinaseca é uma dessas encantadoras cidades medievais que estao intactas. Aqui tem um ótimo restaurante, mas desta vez vou deixar para almoçar em Ponferrada. A cidadezinha está cheia de peregrinos e famílias que vieram pasar o sábado. Sigo o conselho de Tomás de Manjarín e sigo pela rodovia - detesto, a esta altura, caminhar por rodovias, mas a alternativa nao é melhor e é mais longa - e sigo para Campo, onde somos recebidos por uma alegre avó que mostra os peregrinos para seu netinho incentivando-o a dar adeus a eles. Um dia minhas netas passarao aqui. Um velho bem-humorado nos oferece ramos de romero e ao apertar-lhe as maos prende-a e diz que sou eu que nao a solto. O humor daqui para frente vai ser assim, agalegado.
A volta para chegar à Ponferrada me pareceu menor desta vez.
Pouco antes de chegar ao albergue tenho que colocar a capa porque voltou a chover. Antes das duas da tarde estou no albergue paroquial San Nicolás de Flüe, imenso - mais de duzentas camas - e construído sobre o antigo cemitério de Ponferrada. A hospitalidade é a mesma, embora tenham mudado os hospitaleros. Este é um dos melhores albergues do Caminho e com toda alma xacobea. No jardim o totem continua no mesmo lugar e um marco indica a quantidade de quilômetros para Santiago. Na verdade é um memorial a um peregrino finlandês. Até capela tem neste imenso albergue. Resolvemos lavar nossas roupas e nos atende o mesmo Evaristo de sempre, três anos mais velho, o que nao é pouco. Ele e a hospitalera nos indicam o restaurante Mencia e para lá seguimos muitos peregrinos. Parece um restaurante comum. Sentamos e pedimos vinho. O mesero negro nos trouxe um Mencia 2008, D.O.C. Bierzo. É de uma cooperativa vinícola daqui do Bierzo. A garrafa tem o selo numerado do Conselho Regulador, cuja sede fica perto de Villafranca del Bierzo, onde três anos atrás acabara de instalar seu laboratório. Prestem atençao nessa varietal Mencia, que só existe aqui no Bierzo. Ainda ouvirao falar dela. Este é um vinho popular e jovem, mas se preparem, porque logo ele vai ser um dos bons vinhos da Espanha.
O que vem depois é uma sequência de comidas típicas do Bierzo: queijo de oveja curado e cecina (algo com um presunto bovino, diferente da cecina mexicana) com azeite de oliva, ervilhas e verduras e cogumelos frescos com ovos mexidos; carnes grelhadas (lombo de porco, ternera e costela de porco defumada). A guarniçao é o ótimo pao da regiao, forte, casca bem grossa e sem traço algum de produto químico. Sorvetes. Dez euros por pessoa. Um banquete para nunca mais esquecer.
O botillo fica para outra vez.

Comentários

Belenâmbulo disse…
Alencar,
Ano passado, fiz o caminho entre Astorga e Muxía, passando por Finisterre.
Desde a postagem anterior, através de seus relatos, resgato detalhes que me pareciam esquecidos.

Agora começo a estudar o roteiro "América Profunda", que pretendo fazer entre outubro e novembro próximos.

Bom caminho!
Anônimo disse…
Mano Alencar,

Farinha de Bragança é o que há. Meus pais moram lá e todo mês, quando vem a Belém, papai traz pra nós uma farinha de primeira, lavada e torrada tipo um biscoito. Deliciosa.

Depois de temporais seguidos, ontem e hoje abriu um solão em Belém.

Grande abraço e boa caminhada,

Vera Paoloni

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