Notícias do Caminho - de Mansilla de Las Mulas a Villadangos del Páramo
5 de maio de 2010, quarta-feria - O albergue de Mansilla de Las Mulas me revigorou bastante e eu consegui acompanhar o ritmo de meus companheiros de quarto, um deles um francês gigantesco com uma barba e uma cabeleira cinematográficas. Mais que um peregrino, parecia um guerreiro com seu cantil militar. Meu desjejum foi basicamente frutas, para nao arriscar muito. O frio cortante me obrigou a usar três camadas de roupa e mais o anorak que funcionou como corta-vento. Nosso grupo está disperso, pois minha amiga e seu irmao estao mais para a frente. Logo passo a ponte sobre o Rio Eslo e me enfio no andadero paralelo à rodovia. Meus ouvidos agora muito sensíveis reclamam do ruído insuportável desta rodovia. Depois das sete a alvorada é reconfortante e ameniza esse cenário. Logo passo por Villamoros de Mansilla, nestas horas uma cidade que dorme. Mais adiante a ponte sobre o Rio Forma - uma travessia perigosíssima para os peregrinos - diz que estou chegando a Puente de Villarente. Minha sombra ainda está comprida e já passam de oito da manha. Passo o Rio Arcahueja me encaminho para a cidadezinha do mesmo nome, passando pela agradável e acolhedora área de descanso, uma das mais bonitas do Caminho, com duas fontes diferentes, bancos, fonte de água potável e uma área coberta. Deveria ter dormido aqui ontem. Nao deu. Tenho que respeitar meus limites. No Caminho - e na vida - querer nao é poder. Em abril 2007 foi exatamente aqui nesta fonte que eu e Araceli encontramos um casal de palmeiros - designaçao dos que peregrinam a Terra Santa - a caminho de Jerusalém, passando por Roma (está relatado aqui no blog). Faziam o caminho inverso e ficamos impressionados, pois eles pretendiam passar o Natal em Jerusalém. Logo passo por Valdelafuente (o nome diz tudo e uma das fontes de Arcahueja se abastece aqui). Na ermida, os ninhos de cegonha a que cada torre tem direito. Aliás, sao as cegonhas que tem direito às torres e ai de quem tocar nelas. Quando a Catedral de León foi restaurada as obras tiveram que esperar que os filhotes das cegonhas voassem, para atender as pressoes dos ambientalistas.
Agora vou iniciar a aborrecida travessia de oito quilômetros pela periferia e pelos polígonos industrais que cercam León. Já conheço e nao me preocupo porque sei bem a recompensa que me espera. Mais torres e cegonhas. Fotografo todas para mostrar para minha neta, que logo vai saber que cegonhas nao transportam nem seus próprios filhos...
O traçado do Caminho é paralelo à velha ponte. Meu destino é a Catedral. Mas tenho que fazer escala na farmácia para repor o estoque de alcool de romero (nao tinha minha marca preferida, Cuve) e aproveito para comprar medicamentos. Os termômetros medem sete graus, mas o vento deixa uma sensaçao térmica bem menor. León combina modernidade com passado. Ela tem história e futuro. Ela começou com um acampamento da Sétima Legiao romana, que submeteu esta regiao ao grande império. Junto às muralhas jovens estudantes estao em atividade extra-classe. Penso como isso faz diferença entre um garoto desse e os nossos, na mesma idade. Felizmente, a Internet pode reduzir esse gap, se for bem utilizada pelos educadores (para o meu gosto, ainda é incipiente esse uso).
Dez hoas chego à Catedral, quase toda restaurada. É quase uma epifania. Minha e dos peregrinos que me antecederam, inclusive Raul, o madilhenho que peregrina com sua - é uma cadela, retifico agora - golden retriever, a Jan (acho que é assim o nome dela). A patota dele cresceu e todos estao tao ou mais alegres que eu. O francês gigantesco saca uma câmera descartável e pede para um passante fazer uma foto dele. Relembrando que em 2007 eu e Araceli estivemos aqui, entro pela mesma porta com a delicadeza, o respeito e o cuidado que merecem este templo que transcende à religiao. A restauraçao foi magnífica, o que se advinhava já de fora, com a limpeza que restaurou também a tonalidade dourada neste horário. Uma tela mostra detalhes da catedral e, se tempo tivesse, passaria o resto do dia aqui mesmo. Mas espetáculo mesmo é olhar para todos os lados e ver a luz entrando por 1800 metros quadrados de vitrais. Isso mesmo: 1.800 metros quadrados de vitrais. Quem quiser saber o que é algo próximo de uma epifania, venha aqui, em dia de sol, neste horário, e saberá do que falo. Caminho lentamente, passo por trás do coro, volteio e vejo que a restauraçao foi primorosa. O coro está protegido por uma porta de vidro. Saio extasiado na porta oposta, que na verdade era a de entrada, onde ficam os audiofones. Saio daqui com a alegria e a saúde de volta. Parece milagre.
Reinicio o Caminho, mais ou menos ao mesmo tempo que a patota do Raul e sua cadela. Ali perto um marco indica que estou a 330 km de Santiago. Já passei da metade. Um cartaz do Primeiro de Maio mostra que a data ainda é comemorada pelos comunistas daqui. Logo estou em direçao a ponte sobre o Rio Bernesga, passando pelo magnífico Museu de León.
Rapidinho chego a Trobadajo del Camino, praticamente um bairro de León, sem muita graça, para meu gosto.
Em La Virgen del Camino reencontro a controvertida igreja de Josep Maria Subirachs. Nao é feia, mas apenas inquietante. Antes do meio dia paro no mesmo bar em que eu e Araceli estivemos em 2007 e para minha surpresa reencontro Francesco e sua patota de italianos, com a inseparável catala Isabel. Foi um reencontro de muita alegria, pois nao nos víamos desde Terradillos de Templarios. Vamos nos separar de novo porque eles vao por uma variante por Villar de Mazarife e meu destino é Villadangos del Páramo, seguindo o Caminho Francês tradicional que, desgraçadamente, coincide com o traçado da rodovia N-120.
O vento castiga e a temperatura segue baixa, mas nada comparado com os dias anteriores.
Perto de Valverde de La Virgem reencontro as mesmas casas construídas dentro da terra, como as antigas bodegas. Agora parecem habitadas algumas e outras abandonadas. Algumas desmoronaram. Esta nao é uma regiao produtora de vinho, mas sim de cereais. Duas da tarde estou em San Miguel del Camino e agora sei que vou conseguir chegar ao meu destino, Villadangos del Páramo, que alcanço três e meia da tarde, com sol alto e frio. O albergue é público e já tem uma boa quantidade de peregrinos. A hospitalera nao está. Escolho minha cama conforme as regras consuetudinárias. Antes de me instalar completamente reencontro com muita alegria e emoçao meu amigo peregrino de Belém. Estava sem notícias dele há dias. Depois chegam as coreanas Aranya (que vive na Índia) e Xan, mascote de todos os grupos de peregrinos que vao se formando e desfazendo. Duas figuras.
Saimos para fazer compras e verificar as opçoes de restaurante. Uso a internet até onde posso e depois vou jantar. Ainda nao tenho condiçoes de encarar uma ternera guisada e prefiro nao arriscar, na esperança de que amanha consiga encarar um cocido maragato em Astorga.
Vou dormir, mas o albergue fica junto mesmo da rodovia N-120 e o barulho nao ajuda um bom sono.
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