Notícias de Machu Picchu
1º de dezembro de 2009, terça-feira.
Acordo cedinho para reingressar em Machu Picchu. A pressao arterial baixou. Está abaixo do normal, apesar de Águas Calientes ter uma boa altitude.
O dia está chuvoso. Se continuar assim, o acesso para Wayanapicchu e para Machu Picchu (a montanha, bem entendido), será fechado.
Com a guia Sílvia tomo o microonibus e sete horas da manha já estou na cidadela.
A visita agora é feita com calma. Sílvia é mais uma guia mística, que abandonou o catolicismo e agora professa a antiga religiao andina. Subo e desço. Revejo velhas pedras e descubro coisas que nao foram percebidas nas visitas anteriores. Mais informaçoes. Os antigos guias audodidatas desapareceram. Agora todos sao profissionais de nível superior e bom preparo físico para encarar este sobe e desce. Sílvia também acompanha turistas pelas Trilhas (a Longa e Salcantay). Todos os guias estudaram com arqueólogos que, por sua vez, passaram a ter uma queda de asa para o turismo. Só isso explica certos exageros. Mas, como tudo que diz respeito aos incas é mesmo grandioso, vai ver que nem é tao exagerado assim.
No posto de controle da entrada para Wayanapichu somos informados que quase cem visitantes já ingressaram na trilha montanha acima. Deixo para decidir mais tarde se vou subir ou nao.
Quando chego no topo da cidadela, no Torreón del Guarda, a neblina chega e cobre Machu Picchu. Wayanapicchu desaparece nas brumas. O efeito é surreal. Com qualquer tempo Machu Picchu é encantadora, fascinante. Fico ali no alto esperando um instante para a foto clássica. Tenho que repetir umas quantas vezes até conseguir uma com menos neblina.
A chuva agora é um chuvisco. Mas o suficiente para deixar a trilha resvaladiça. Desisto de subir. Fica para outra oportunidade. É mais um bom pretexto para voltar aqui em dia de sol.
Sílvia tinha levado umas folhas de coca para fazermos uma oferenda. Respeitoso, compartilho com ela a oferenda e enterro três folhas de coca em uma caverna que foi lavrada pelos incas e agora é local de culto mais ou menos clandestino. Voltarei um dia.
Onze horas baixo de microonibus para Águas Calientes e vou à estaçao do trem trocar o bilhete (de Backpacker para Vistadome). Convido Sílvia para almoçar um cuy. Ela agradece e me leva a um restaurante popular - La Payacha (a velhinha) - onde tinha deixado sua bagagem. Sugiro um cuy chacteado, isto é, porquinho-da-Índia amassado com uma mao-de-pilao de granito, temperado com ervas andinas e frito inteiro. Ele chega assim esparramado em uma travessa, como se fosse um leitaozinho, guarnecido de poroto (pimentao picante), cebola, tomate e camote (batada doce alaranjada). Comemos com as maos. Isto nao é um almoço, é um ritual. A ancestralidade deste alimento é forte o bastante para na Santa Ceia que está no refeitório do Convento de Sao Francisco, em Lima, Jesus e os seus apóstolos comam cuyes e tomem chicha (bebida fermentada de milho, como o nosso aluá) em keros (cálices incas). Sílvia é uma legítima quechua e está feliz com a iniciativa. Nao foi um almoço, foi um encontro de culturas, um ato de comunhao. Nuestra América profunda é feita também disso.
Nos despedimos, Sílvia segue para a estaçao e eu para o hotel, onde vou recolher o restante de minha bagagem. Passo em um cybercafé, me atualizo e vou para a estaçao.
O Vistadome é o trem de primeira classe (o de luxo se chama Hiram Bingham). Tem um razoável serviço de bordo, janelas amplas e teto de vidro. Logo estou subindo o Urubamba rumo ao Vale Sagrado. A estrada de ferro serpenteia espremida entre o rio e as montanhas, pelo traçado de uma antiga trilha inca. No vale aberto sucedem-se os cultivos de milho e batata. Visto assim de perto nota-se que o Urubamba está poluído por garrafas plásticas, que sao recolhidas para reciclar. Uma pena. Calma e paz, é a sensaçao que o Vale Sagrado nos infunde.
Lá pelas tantas o vagao é invadido por um dançarino com roupas típicas. E logo por um casal de manequins que apresentam roupas de alpaca. Lindíssimas. Vendem algumas. Marcam os ajustes e acertam hora para entrega no hotel. No início da noite o trem chega a Poroy. Antigamente o trem entrava em Cuzco ziguezagueando montanha acima. Agora o percurso termina em Poroy, alguns quilômetros antes, de onde os turistas sao transladados para os hotéis. Sete da noite estou de volta ao Hotel Royal Inka II.
Depois de rearrumar a bagagem saio para um último passeio noturno. Caminho sem compromisso pela Plaza de Armas e tomo o rumo de San Blas, o encantador bairro gastronômico de Cuzco (melhor que a Zona Rosa da Ciudad de México). Volto ao Pacha Papa e por puro descuido termino exagerando no pedido. Peço um Pisco Sour e uma entrada de chicharrones. O que nao sabia é que os chicharrones daqui sao na verdade três costeletas com cebola, milho torrado, batata e pimentao, que valem por uma refeiçao. Tarde demais, pois logo em seguida chega um brochete de alpaca marinado, tamales (pamonha), rocoto relleno (pimentao recheado) gratinado com queijo andino, salada, batata e macacheira fritas, queijo andino e, para arrematar, um doce típico de kiwicha (amaranto). Ficou por mais ou menos 60 reais.
Desço devagarinho para a Plaza de Armas, daí para a Plaza Recozijo e logo estou no hotel para minha última noite em Cuzco.
No dia seguinte acordo cedo o bastante para ir ao Mercado, onde compro gorros típicos e faço as últimas fotos. Sinceramente, todos os mercados andinos que conheço sao muito mais ricos que o Ver-o-Peso. A variedade de artesanato, frutas, legumes, cereais e comidas é muito, mas muito maior. O mercado de Otavalo, no Equador, por exemplo, é muito maior que o Ver-o-Peso.
Volto ao hotel e logo estou no aeroporto, terminando meus dias de imersao profunda na América andina.
Valeu cada dia, cada hora, cada minuto.
Comentários
Voltarei aos Andes dentro de um ano e meio a dois, para fazer outra caminhada, pela Trilha Salcantay, que chega até 5.000 metros de altitude (a mesma de Katmandu, no Tibete).
Você está convidada.
Tenhamos todos um Feliz 2010.
Já colocarei na minha lista de planejamento, para os próximos dois anos, o aprimoramento da minha condição física para a subida da trilha de Salcantay. Abraços cordiais.
Na primeira vez que li o trecho no qual você diz que reviu "velhas pedras" e descobriu "coisas que nao foram percebidas nas visitas anteriores", confesso que pensei se tratar apenas de um floreio retórico.
Pois bem... ontem estive pela primeira vez em Machupicchu e, enquanto caminhava entre as ruínas, pude finalmente compreender a profundidade de seu comentário. Mesmo que eu tenha passado 9 horas na cidade (incluindo a subida a Waynapicchu e a Huchuypicchu), saí de lá com a sensaçao de que é necessário regressar outras vezes. Devido à ausência (voluntária) de planejamento, nao pude percorrer o Caminho Inca. Como forma de "compensaçao", subi e desci a pé, pelas escadas, desde Aguas Calientes. Na chegada, pouco antes das 6 da manha, influenciado pelas leituras prévias, imaginei-me o próprio Hiram Bingham extasiado ao encontrar as paredes do Templo do Sol. Em vez disso, ao término da escadaria, dei de cara com uma fila de quase cem metros de turistas... Uma verdadeira Babel.
Estou há 24 dias perambulando desde Santiago, passando por San Pedro de Atacama, Salar de Uyuni e adjacências, Potosí, Sucre, La Paz, Copacabana, Isla del Sol, e agora, Cusco.
Devo lhe dizer que suas postagens têm sido para mim uma ótima alternativa ao "Circuito Gringo" ditado pelo Lonely Planet.
Graças a elas, e devido à escassez de tempo, decidi-me por nao ir às Islas Flotantes (outros turistas também comentaram o aspecto "fake" do passeio). Também experimentei o cuy (o meu foi "al horno") e fiz uma reserva no barco Golfinho, em Iquitos, para onde sigo na terça. Em Tabatinga, procurarei o barco Puma, conforme orientaçao do Alencar's Planet... ou seria Alencar's Guide?
Grande abraço!
Puxa vida, não mereço tanto!
Fico feliz que meu relato tenha ajudado você a fazer escolhas.
Suas e minhas, pois agora tenho a certeza que devo voltar para fazer a Trilha Salcantay e subir a montanha sagrada, nem que seja engatinhando.
Seu comentário merece ir para a ribalta (thanks, Juvêncio)