Notícias do Caminho - de Carrión de Los Condes a Terradillos de Templários
2 de maio de 2010, domingo. É um domingo sem cara de domingo. Ontem, sábado, teve cara de domingo. As freirinhas do albergue, agostinianas, marcaram uma cantoria para sete da noite, antes da missa. Quando cheguei um coro de peregrinos do mundo inteiro cantava Guantanamera, acompanhando uma norteamericana que tocava violao. Muito diferente de três anos atrás, quando o rigor do cura - quase rabugice - nao permitia nada assim. De cançao em cançao, cada nacionalidade vai sendo homenageada. Os cânticos vao carregando a atmosfera de emoçao. Uma delas dá as boas-vindas, outra fala de um outro mundo onde todos sao irmaos. As freirinhas se apresentam e dizem de sua missao no acolhimento de peregrinos. Incentivam os peregrinos a compartilharem os motivos pelo quais estao no Caminho. Tem de tudo. Uma espanhola - um casal que caminha junto conosco há dias - relata que esteve muito doente e prometeu fazer o Caminho se ficasse boa. Ficou boa demais, pois o casal é sempre o primeiro a sair e o primeiro a chegar nos albergues. Um simpático italiano, Francesco, diz que caminha por um amigo de 66 anos, que está com um bruto tumor no estômago. Uma espanhola caminha pela mae da amiga argentina que morreu sem fazer o Caminho. A freirinha distribui estrelas de papel feitas pelas monjas e depois abençoa um por um dos peregrinos, sem perguntar-lhes a crença.
Assisto parte da missa dos peregrinos, com mais frequência do que a missa regular, ao meio-dia. Minha amiga e meu amigos de Belém recebem a bençao do cura e ela fica emocionada o resto do dia. Sérgio, peregrino de Curitiba, de quem vinha tendo notícias há dias, me reconhece sem nunca ter me visto. Coisas do Caminho. Caminhamos um pouco pela cidade enquanto a noite cai e o frio aumenta. Na beira do rio um parque lembra as Tulherias. No restaurante janto uma sopa castellana e meus amigos um lechazo (cordeiro de leite). Cumpro rigorosamente a disciplina do albergue e dez da noite já estou no beliche.
Os dezessete quilômetros que separam Carrión de Los Condes de Calzadilla de La Cueza coloca os peregrinos mais cedo na trilha. O antigo monastério de San Zoilo, na saída de Carrión, agora é um hotel de luxo. As setas atrapalham um pouco na saída. Logo passamos pela Abadia de Benevivere e começamos o enfrentamento dos monótonos dezessete quilômetros sem outra coisa que nao a estradinha que um dia foi uma via romana (a calzada Aquitania). Descontadas as árvores plantadas que amenizam as margens da estradinha, minhas referências sao uns galpoes e uma árvore diferente, uma encina. No cruzamento mais ou menos no meio do percurso agora tem um bar. O dono está espalhando as cadeiras e alguns peregrinos vao parando. O dia está bom para caminhar. Nao tem sol e a temperatura está boa, coisa de una doze graus. Nada do sufoto que passamos aqui três anos atrás, sob o sol. No verao agora as autoridades colocam carros distribuindo água. Uma patrulha da Guardia Civil passa lentamente. Logo vamos nos dispersando. Os mais rápidos se distanciam, os retardatários vao ficando. Sérgio passa por mim, tira um dedo de prosa e vai em frente. Marcamos encontro no albergue novo de Terradillos de Templários. Logo estou só. O silêncio é quebrado pelos meus próprios passos e pela hipnótica batida do cajado na gravilha. Um passarinho marca seu território subindo e cantando até un dez metros de altura. É assim e vai ser assim nestas planuras leonesas. Os caracóis estao ativos e cuido para nao pisar em um só deles. De repente, antes das dez da manha, a torre do cemitério brota no meio de um trigal. Estou chegando a Calzadilla e, comparando com a primeira vez, foi um chocolate. Passo pelo albergue onde Nenê nos atendeu três anos atrás e vou direto para o restaurante do hostal (do mesmo dono). Na porta um jovem arruma as cadeiras e conversa com um casal que está esperando a filha, que peregrina de Santiago para Roma (é uma romeira, no verdadeiro sentido da palavra). Pelo meu sotaque o jovem nota que sou brasileiro e se apresenta: Charles, de Guarulhos. Este é um reduto de brasileiros. O dono me reconhece e me recebe com alegria. Sua noiva é brasileira. Ele diz que vai passar o Carnaval de 2011 no Rio. Tomo um café e me marcho para Lédigos, agora um pulo seis quilômetros mais adiante. A paisagem é menos monótona. A trilha agora ziguezagueia com a rodovia. Hoje é dia de ciclistas. Passo rápido por Lédigos, que parece ainda nao ter acordado.
Mais três quilômetros e avisto o novo albergue Los Templários, onde chego ao meio-dia. Os cajados na porta dizem que já chegaram outros antes. Outros peregrinos vao passando. Outros tantos vao ficando. Estiro os músculos e reservo lugar para meus amigos.
Almoço com Sérgio, sempre muito simpático. Como hoje é domingo, peço um chupito (no caso, um licor de Orujo com ervas) e um café.
Espero meus amigos que chegam depois das quatro da tarde, quando o albergue já está alvoraçado de peregrinos.
Estes albergues novos parecem frios e um tanto distantes do espírito jacobeo, mas os peregrinos vao se encarregando de enquadrá-los. Minha aposta é que logo logo eles terao cara de albergues à moda antiga. Controvérsia a parte, penso que a vitalidade do Caminho passa por esses diferentes tipos de albergues (municipais, paroquiais e privados).
Agora, por exemplo, o bar está lotado de peregrinos que fazem a algaravia multinacional e multicultural de sempre. O espírito do Caminho prevalecerá, sempre.
O Caminho terá vida longa.
É o que espero e desejo.
Comentários
é uma delícia acompanhar teu caminho pelo blog. Mas hoje, fui mais esperta: fiz um café (tomo amargo, no ponto bom) bem gostoso e sentei pra ler com o note no colo, quase sentada na rede, na área de casa, vento forte batendo. Me transportei até os peregrinos.
Não sei se consigo fazer uma caminhada tão longa, que exige tanto esforço, mas que tá batendo uma vontade daquelas que se aconchega, isso tá.
Volto amanhã pra te ler. Boa caminhada, querido. Pra ti e pros que encontras no rumo.
Abraços,
Vera Paoloni
Que bom!
Estou até com inveja de você, pois aqui só vou encontrar rede em Vega de Valcarce, em albergue de brasileiros.
Depois dessa coceirinha inicial a próxima etapa é querer fazer o Caminho. A segunda etapa é planejar, pois o Caminho começa muito antes de se dar o primeiro passo. Terceiro, disciplina para cumprir o planejado.
Claro que o plano nao pode ser algo rigoroso, exato. Nao é engenharia. Mas se tens um plano vais aproveitar muito mais do Caminho.
Quando você quiser, marque um dia para conversarmos sobre esse seu projeto.
Não teve post ontem e nem hoje... Falta de net?
Grande abraço (aqui chove demais e são 5 e 15 da tarde. Toró bem cara de Belém).
Vera Paoloni
Tive problemas de saude / a comida de um albergue em Terradillos de Templ'arios, de nome Los Templarios / nao me foi bem.
E no albergue de Mansilla de Las Mulas tive que dividir um computador com um peregrino italiano que depois colonizou a m'aquina at'e a hora de dormir. E eu precisava descansar para recuperar as for\as.
Consaegui. Hoje estou em Villadangos del P'aramo, depois de caminhar 38 km em mais ou menos nove horas.
Agora s'o tenho 15 minutos e uma peregrina olhando por cima do omobro.
Obrigado por acompanhar/me.
Voce nao vai se arrpender de pensar em fazer, em querer fazer e em fazer o Caminho.
Vamos conversar na volta.
Marque um dia para passar l'a em casa.
Bue Camino.