Notícias do Caminho - de Pedrouzo a Santiago de Compostela

15 de maio de 2010, sábado. Acordo mais cedo neste sábado. A ansiedade me desperta antes do IPhone. Santiago, peregrino de Cáceres que vive em Barcelona me devolve na penunbra o guia que emprestara ontem à noite para ele. Ele sabe que vou sair cedo para dar tempo de assistir a Missa dos Peregrinos. Nos despedimos e vou cuidar das coisas. Já dormi com os pés preparados com Compeed - outro bom amigo do peregrino - e com as meias, para nao perder tempo. Está escuro e faz frio. Faço o alongamento ainda dentro do albergue e saímos juntos eu, o peregrino de Belém - sua irma deve ter chegado ontem a Santiago - e um casal jovem.
Na entrada do bosque de eucaliptos que vencemos três anos atrás com a luz dos celulares, duas jovens esperam quem tenha lanterna para guiá-las. Entramos errado na trilha, mas a lanterna ajuda a encontrar o rumo. Caminhamos todo o bosque e quando saímos dele bem lá adiante, já avistamos as luzes do Aeroporto de Labacolla, que atende Santiago de Compostela (seu movimento este ano cresceu mais do que o de Ibiza). Faz frio - algo como 11 a 12 graus - mas nao chove e essa é a novidade boa. Logo estamos costeando o alambrado do aeroporto, passando junto às torres das luzes de aproximaçao. Oito horas da manha estamos em Labacolla. Já vencemos nove dos vinte quilômetros que caminharemos hoje.
Mais uma hora de caminhada e chegamos a San Marcos. Passávamos em frente à televisao da Galícia quando nossa amiga peregrina ligou para dizer que chegara ontem por volta de dez da noite e marcamos encontro no Obradoiro. Logo aparece a escultura que marca a visita do Papa Joao Paulo II no Monte do Gozo, entrevista à distância. Antes das nove já estamos exatamente aí, onde paramos para fotografar este monumento horroroso, pelo menos para meu gosto. Antigamente os peregrinos entravam em êxtase quando chegavam aqui e avistavam as torres da catedral. Compreendo. A quantidade de endorfinas acumuladas deveria produzir esse efeito. Mas agora, diante desse horrendo cometimento artístico, nao há extase que resista. E, além disso, nao dá mais para ver as torres, escondidas por um bosque de reflorestamento.
Mas este monumento marca também um megacomplexo turístico religioso, com centro de convençoes, hotel, bungalows, albergue, supermercado, cafeteria, restaurante, self-service e sabe-se lá mais o que. Turismo religioso é isso aí. Só para dar uma idéia para a Diretoria da Festa de Nossa Senhora de Nazaré e para o Governo do Estado do Pará: aqui a Xunta da Galícia criou uma sociedade anônima só para administrar o Plan Xacobeo. É exatamente essa sociedade anônima que cuida de tudo para que os Anos Santos aconteçam como planejado. Mais ou menos como planejado, pois este ano a crise econômica espanhola arrefeceu o fluxo de peregrinos.
Antes de dez da manha já estamos em um bar de Santiago tomando café do peregrino (café com leite grande e tarta de Santiago).
Os grupos de peregrinos começam a passar. Um bem nutrido grupo de jovens desde do Monte do Gozo. Estao alegres, cantam e tocam violoes. Sinceramente, prefiro vê-los alegres assim do que alegres pelo barato das drogas que, convenhamos, sao uma droga.
Nosso destino imediato é o albergue Acuario, o mesmo onde eu e Araceli ficamos em 2007. É um barato esse albergue, que atende peregrinos de todas as idades e tem um jeitao assim meio new age, exotérico. A boa novidade é que a hospitalera é Luzia, uma cearense de Mosenhor Tabosa, que nos atende com a calorosa amabilidade sertaneja. Carimba nossa credencial e guarda nossas mochilas, pois precisamos ir para a Catedral, onde as filas iniciam sete da manha neste Ano Xacobeo.
Chego finalmente ao Obradoiro, com muita alegria, que só nao é maior porque agora Araceli nao está aqui. Alegria em estado puro é o que se consegue aqui, neste exato lugar. Nossa amiga nos encontra em frente ao Hostal de Los Reyes Católicos e nos abraçamos com alegria. Alegria de chegar e de reencontrar. Alegria de saber que voltei e voltarei outras vezes, com Araceli, com Maria Eliane, com Stella e, quem sabe, com Clarisse, que ainda nao completou um ano de vida.
A fila para entrar é grande, mas vale a pena. É um ritual cristao, mas que pessoas de todas as crenças ou agnósticos se submetem de bom grado. Na fila se misturam peregrinos que chegaram a pé, de perto ou de longe, com senhores e senhoras bem agasalhadas, jovens de todas as idades. Minha amiga foi barrada porque estava com uma sacola. As normas de segurança da catedral este ano estao rigidas, demais até.
Assistimos a Missa dos Peregrinos, com a tradicional lista dos que chegaram e de onde vieram. O bispo de Astorga concelebra a Missa. Nao teve freirinha cantando desta vez. Era um padre. E um organista muito bom. A homilia nao foi nada de excepcional. Mas o bisto de Astorga fez a defesa da Igreja e do Papa, tema recorrente nestes tempos.
Ao final, o grande final. O botafumeiro. O imenso turíbulo é herança franquista - doaçao de franquistas para a Catedral - mas nesta Espanha que ainda nao cicatrizou as feridas do franquismo (Baltasar Garzón que o diga), esse ritual transcende. O efeito do imenso turíbulo oscilando no transepto, movido por oito homens - o líder dele é a cara do Ministro Gilmar - produz um efeito hipnótico sobre a multidao de crentes. A verticalidade do templo gótico reforça essse efeito. E os aplausos sao inevitáveis.
Viva Santiago.
Amanha sigo para Finisterre, o fim da terra plana dos antigos.
Voltarei ao Caminho outras vezes, com certeza.

Comentários

Belenâmbulo disse…
Alencar,
Lamento ter perdido o timing de seus relatos e, com isso, a oportunidade de mandar lembranças a Luzia, Felicidad e Ara, do Albergue Acuario...
A uma hora dessas, você já deve estar chegando a Negreira.

Abraço e bom caminho!
Alencar,

que boa chegada, ein?

Grande abraço, mano!
JOSE MARIA disse…
Obrigado, Belenâmbulo,
Obrigado, Vera.
Fiquei três dias sem Internet no Caminho de Finisterre, que é, digamos assim, um caminho pagao.
Mas foi muito legal voltar ao fim da terra, onde cheguei hoje e já voltei de ônibus para Santiago.
Amanha cedo vou para Zamora, em busca de informaçoes sobre minha avó, que nasceu ali em 1886 mais ou menos.
Valeu.
Valeu muito.
Voltarei para fazer o Caminho Português.

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