Notícias da Trilha Inca

27 de novembro de 2009, sexta-feira.
Acordo cedo e vou para a recepçao do Hotel Royal Inca II, em Cuzco, acerto os últimos detalhes com a representante da operatora local (Inka Travel, excelente) e tomo o microonibus que está recolhendo os passageiros, os porteadores (carregadores), o cozinheiro e o guia, que depois nos deu as informaçoes para prosseguirmos a viagem até o km 82 da ferrovia Cuzco-Águas Calientes (PeruRail).
Em Urubamba, onde o Vilcanota muda de nome, o tempo nublado nao era nada animador. Passamos por Ollantaytambo, que já visitara na véspera. O microonibus pára na Plaza de Armas, compro água, umas barras de kiwicha (amaranto) e um palo, o bastao que vai me ajudar nessa travessia pelo mundo inca. É mais parecido com um cabo de vassoura com empunhadura bordada e uma alça. Gerson, o guia, me explica que é aproveitamento de sobras de madeira que é torneada e vendida aos trilheiros. Pelo menos um do lote que me oferece uma quechua vestida a caráter já tinha toda a pinta de ter feito a Trilha umas duas vezes ou mais.
No km 82, depois de passar por um belíssimo trecho do vale do Urubamba, descemos todos em um local com pequenas áreas cobertas para os porteadores prepararem os mochiloes com nossas bagagens e a tralha de acampar. Cada um pode carregar com facilidade 40 kg e faziam isso até que as autoridades impuseram o limite de 25 kg para cada porteador.
Nossso grupo é formado por seis trilheiros: eu, dois australianos (pai e filho, de 60 e 16 anos respectivamente), um peruano (cunhado do australiano, 25 anos), uma canadense (25 anos) e uma irlandesa (25 anos).
O guia é o líder de todos, mas o cozinheiro é o líder dos porteadores, escolhidos por ele, quase todos de uma mesma cidade (Urcos), soube depois, durante um ritual de apresentaçao. Eles pesam as bagagens e empacotam até o limite de 25 kg. Chovisca e todos os trilheiros - quinhentos mais ou menos - se dirigem ao posto de controle, ainda na margem direita do Urubamba. Na dúvida, ponho o anorak - da The North Face, último modelo, 80 gramas - e o poncho, da brasileiríssima Trilhas & Rumos, já testado nos 860 km do Caminho de Santiago. Passamos pelo controle , carimbei meu passaporte - é um costume local que resolvi respeitar - me juntei aos demais, nos abraçamos em círculo e gritamos o slogan de Obama: We can! Vamos ver se podemos mesmo. Confesso uma certa ansiedade, pois começar a Trilha Inca com chuva nao estava propriamente nos meus planos, embora soubesse ser essa uma possibilidade forte.
Os porteadores passar por um controle a parte, em que as autoridades pesam cada carga. Gerson nos orienta: durante toda a Trilha o lado da montanha fica para os trilheiros e a borda para os porteadores, que estao sempre com pressa e tem prioridade no caminho.
Faço alongamento e começo a caminhar lentamente. Estamos a 2.750 m sobre o nível do mar. Sao quase 11 horas da manha. Logo somos ultrapassados pelos porteadores de todos os grupos. É impressionante a força e a habilidade deles. A carga é quase do tamanho deles, que via de regra usam umas sandálias feitas de tiras de pneus. Alguns usam tenis. Tem desde jovens, quase adolescentes, até um que me disse ter 64 anos. Eles nao andam, correm, com um passo miudinho que ajuda a manter o equilíbrio, pela força da inércia.
A chuva passou, a caminhada fez subir a temperatura corporal e logo tirei o poncho, o anorak e o fleece (de outro tecido de última geraçao da The North Face que protege contra o frio).
Pouco depois de 13 h, em Kanabamba, topamos com o acampamento já montado pelos porteadores e pelo cozinheiro e uma hora depois já estávamos experimentando o talento dele, que caprichou no almoço: sopa, pao de alho, salada, hamburguer de frango, arroz, batata frita, molho de tomate, banana e chá de coca. Nao fez feio.
Retomamos a caminhada e lá pelas três da tarde topamos com a primeira das muitas ruínas da Trilha, a de Llactapata (2.650 m sobre o nível do mar), ainda no vale do Urubamba (na verdade na confluencia do Cusichaca com o Urubamba). Como a Trilha é pelo alto, temos uma visao panorâmica. Gerson nos dá explicaçoes em inglês e espanhol. Pelo binóculo acompanho o movimento dos operários e especialistas que estao restaurando as ruínas. No caminho encontramos carregadores de argila em sacos e agora vejo uma fila deles chegando nas ruínas.
Antes das seis da tarde já tínhamos subido até Hatunchaca (2.930 m sobre o nível do mar), nosso primeiro acampanento. Desse lugar avistamos um nevado sobre as nuvens, um espetáculo lindíssimo. Nestas primeiras horas de Camino Inca começo a me acostumar com outra dimensao dominada pela verticalidade. Na planície nao temos essa noçao de verticalidade. E se tem uma palavra que pode descrever a paisagem andina é esta: vertiginosa. Eu, acrofóbico assumido, começo a me acostumar com a altura. Percebo logo que meu cérebro é enganado, pois a Trilha escarpada é coberta de arbustos, capim alto e bambus, e como ele nao percebe isso, nao tenho vertigens que me afligem em lugares altos, mesmo que bem protegidos com guarda-corpos.
O lugar do acampamento é plano e nele vivem pelo menos duas famílias, com cachorros, um gato e umas vacas. Em uma barraca circular coberta de paja brava (palha brava) o cozinheiro nos serve chá (de coca, por supuesto), chocolate, pipocas e bolachas. Uma lua quase cheia aparece no anoitecer. É sob ela que somos apresentados ao cozinheiro e aos porteadores, cumprimentando a cada um deles, posando para fotos. Nos mostram a flâmula que vai identificar nossos acampamentos.
Pouco depois jantamos no mesmo lugar. Outra vez o cozinheiro caprichou.
Vou para a barraca - carpa, como dizem aqui - e me enfio no saco de dormir, que enfrenta temperaturas abaixo de zero. O excesso de chá de coca e o calor me tiram o sono. Dormi mais ou menos como durmo em aviao.
Nessa primeira noite aprendi que já temos tecnologia para dispensar a calefaçao e reduzir o consumo de energia, poupando recursos cada vez mais escassos. Falta só convencer europeus, americanos, australianos, neozelandeses, brasileiros do sul, argentinos etc. disso.
Tenho esperanças de que aprendamos isso, pois esta Trilha é uma babel com gentes de todo mundo.
Todos eles saem daqui sabendo que a Terra é nossa mae, a Pachamama.

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