Notícias da Ilha Amantaní

Navegando desde a Ilha dos Uros por aproximadamente duas horas chegamos a Ilha Amantaní.
Somos recebidos no cais pelo Presidente da comunidade que vai nos receber. Depois das boas-vindas em quechua, somos apresentados às representantes das famílias que vao nos hospedar. A mim e a um basco chamado Jon - em euskera, antes era Juan - coube a família de Mari, uma simpática e tímida quechua de 17 anos, vestida a caráter para nos receber. O pai de Mari é Antonio, a mae é Luisa e o irmao é Juan Carlos. A família vive da agricultura e do turismo. Com os ingressos do turismo ampliaram sua casa de adobe, que agora tem dois pisos e quartos confortàveis para receber até seis hóspedes. Nos andenes (terraços herdados dos incas) cultivam batata, oca (um tubérculo adocicado), milho, quínua e habas (favas).
Depois de um passeio pelos andenes, fui ver Mari preparar nosso almoço, já sem as roupas tradicionais, na cozinha de uns quatro ou cinco metros quadrados. O fogao de cerâmica tem três bocas, onde ela prepara com muita calma - slow food é isso aí - uma sopa de quínua com papa (batata), oca e cenoura e frita uma rodela de queijo andino. No final, um digestivo chá de muña, uma erva nativa que cresce entre as pedras dos andenes e parece com arruda.
Depois nos reunimos no campo de futebol da comunidade - no porto de Puno encontrei um barco com nome Rey Pelé -para iniciar uma caminhada até o topo da ilha, pouco acima de 4.000 m.
No muro do campo de futebol estao escritos os três preceitos que estruram a vida social desta ilha: ama suwa, ama q´ella, ama llullav. Nao, roubar, nao ser indolente, nao mentir. Esses sao os fundamentos filosóficos imemoriais desta civilizaçao antiga e desta ilha em particular. O resultado é criminalidade zero. Nao existem cercas ou caes de guarda. Os problemas da comunidade sao resolvidas em reunioes domingueiras. Perguntei para Antonio sobre crimes (homicídios, roubos etc) e ele teve dificuldade para entender a pergunta, respondendo que aqui as pessoas morrem de morte natural.
Começamos a subida até o topo. Uma canseira chegar lá. O ar rarefeito obriga a parar umas quantas vezes. Inicio assim minha aclimataçao para fazer a Trilha Inca na sexta-feira. No topo, pouco acima de 4.000 m -o Titicaca está a 3.800 m e baixando cada vez mais - ficam as ruínas do templo a http://www.flickr.com/photos/fotolobo/411490744/ (Pai Terra). Conforme a tradiçao, dei três voltas em torno dele, dedicando-as a três desejos de Araceli (nao pode ser para o próprio caminhante, depois ela escolhe). O pôr do sol é fantástico nessa altitude e dá para distinguir na linha do horizonte nevados que ficam na Bolívia.
Volto para a casa de Antonio já de noite. Somos apresentados - eu, Jon e meu guia Adrian - a Antonio e Luisa, que agora prepara nosso jantar com a calma ancestral que transmitiu para Mari. O jantar é sopa de quínua, batata cozida com um delicado tempero, arroz e chá de muña.
Depois do jantar fui - devidamente paramentado com um poncho emprestado por Antonio - para uma fiesta no centro comunitário. Revendo agora as fotos, sinceramente, nao convenci ninguem da minha origem quechua, nem sentado, nem dançando com Mari. Nao podendo pagar mais mico do que o assim já bem pago, voltei para dormir o sono dos justos.
Acordei cedo - o sol nasce cinco horas da manha - com o som da chuva, das ondas do Titicaca, do cantar distante de um galo e o zurrar de um jumento.
Fui contemplar o Titicaca e caminhar por outros andenes onde já brotam o milho, a batata e a quínua. A agricultura ainda é praticada como nos tempos dos incas. Nao usam arado, mas apenas enxada para fazer as leiras. Sao hábeis no uso da água de aproveitam bem o terreno inclinado. Mas esta é uma característica destas Ilhas (Amantaní e Taquiles). No restante do Peru os andenes estao sendo abandonados, o que nao acontecia vinte anos atràs, quando estive aqui.
O desayuno preparado por Luisa foi panqueca com geléia de morango, sopa de quínua com macarrao, chuño (batata desidratada), batata e cenoura e chá de muña.
Nos despedimos de Luisa e Antonio e Mari nos acompanhou até o porto, para um ritual coletivo de gratidao e despedidas. Mais que um ritual, é mesmo uma imersao profunda nesta América profunda.
Viver bem - e calmamente - com pouco, construindo, aceitando e praticando preceitos claros e sólidos, é a liçao que nossa civilizaçao deve aprender com as famílias dos uros e dos quechuas da Ilha Amantaní.

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