Depois da Morte, a Congestão, o Choro e a Surra

Publico mais uma crônica do amigo Octávio Pessôa. O tema desta vez é múltiplo. Morte, congestão, choro e surra.

Depois da Morte, a Congestão, o Choro e a Surra

Octavio Pessôa Ferreira*

A curuminzada estava com toda corda, no porto de Urucurituba, cidade amazonense situada na boca de cima do paraná do Ramos, um dos diversos paranás da bacia do rio Amazonas.

Eu apreciava tudo da proa do barco a motor Zezinho, em que meu pai fazia comércio de regatão. Uma espécie de mascate do rio, que atracando de porto em porto, inclusive nas casas de ribeirinhos, ia comprando produtos regionais e vendendo mercadorias, muitas vezes na base da troca pura e simples. Era tabaco de corda, papel Colomy, remédios como pílulas do Dr. Mattos, Linimento Sloan, Frixal, Óleo Elétrico, Regulador Gesteira, Mesarim e Uvilon, Biotônico Fontoura e Capivarol, Emulsão de Scoth, sabonetes, escovas e pastas de dentes Kolinos e Eucalol, pilhas Eveready e Rai-O-Vac, lanternas, tecidos diversos, biscoitos Pif-Paf, bombons, cachaça de diversas marcas. Mercadorias que eram trocadas por pele de jacaré-açu e jacaré-tinga, pirarucu salgado, fibra de juta, farinha d’água, galinhas e patos e, às vezes até, boi em pé.

O regatão tinha também uma função social importante. Ante a impossibilidade dos Correios alcançarem os lugares mais distantes, era o regatão que levava e trazia cartas e encomendas e, às vezes, um simples recado verbal pros ribeirinhos. Especialmente quando as emissoras de rádio AM só existiam nas capitais- Belém e Manaus e seus transmissores eram de curto alcance.

Eu, de férias escolares, ajudava na conferência dos produtos que entravam no barco, ou na pesagem da mercadoria. Naquele dia, eu realizava a tarefa, de olho na algazarra dos moleques e com vontade de estar lá no meio deles.

Entre os curumins, destacava-se um afrodescendente, na linguagem politicamente correta de hoje, tão magro que parecia uma lombriga. Gritava com os outros e, se outro moleque o enfrentava, dava porrada mesmo. Passava pelas baiúcas do porto, roubava um tucuman duma barraca, metia a mão no paneiro de farinha doutra, arrancava uma banana da penca de uma terceira e saía correndo. Se um merceeiro ía mais longe na perseguição, atirava-se nas águas barrentas do Ramos. Quando boiava lá adiante, esboçava uma risada desafiadora, com os alvos dentes refletindo os raios do sol do verão. Se não se concretizou nenhum dos vaticínios da avó dele, com certeza virou um político “bem sucedido”. Queda e curriculum para a atividade não lhe faltavam.

A avó era uma senhora idosa que lavava e batia roupa numa das pontes daquele porto e quarava numa estrutura improvisada, na sua ilharga. Ela pitava uma porronca que pendia daquela boca que, na arcada inferior tinha apenas o goleiro e, na de cima, as duas traves. O que lhe proporcionava uma fala engraçada, prá dizer o mínimo. Eu já tinha observado, quando ela murmurava cantigas, entre os poucos dentes que lhe restavam.

A velha fazia ouvidos moucos às diabruras do neto, mas não se conteve quando o Geraldo, (nessa altura eu já sabia o nome dele, de tanto os moleques gritarem “Pô, Geraldo”, “Para, Geraldo”, “Égua, Geraldo”) começou a comer melancia. Ele cortou ao meio uma melancia comprida e fez dois bocós que “sentou” na cabeça duma ponte. Aí, metia a mão no bocó, empurrava um pedaço de melancia na boca, e tchupum, atirava-se na água. Pela quarta ou quinta vez, a velha, com aquela boca de chupar ovo, passou o ralho:

- Girado, curumim preveso, num faz isso, cuirão. Tu acaba de cumê melancia, toma banho, cai nágua, morre, pega uma congestão, vai prá casa chorando, chega lá, tu ainda apanha, diacho.

* Jornalista, advogado e auditor federal de controle externo. E-mail: octavio.pessoa.ferreira@gmail.com

Glossário:

Bocó: estrutura ôca, arredondada ou cilíndrica, aberta em apenas uma das extremidades. Termo também usado para identificar os tolos. Por exemplo: “Este cara é um bocó”.

Ilharga: Está na ilharga, aquilo que está ao lado e próximo à pessoa. Para o Aurélio, “ilharga é cada uma das partes laterais do abdome”

Pitar: fumar

Porronca: cigarro feito manualmente, com o tabaco de corda triturado, envolvido em papel fino, o mais conhecido o papel Colomy.

Quarar: secar no quarador- estrutura singela onde se põe a roupa lavada para enxugar. De preferência, é montado à sombra e em lugar aberto e ventilado, prá que a roupa seque sem “queimar”.


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